segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Feijoada de Lampreia

“As lampréias ou lampreias são peixes de água doce ou anádromas com forma de enguias, mas sem maxilas. A boca está transformada numa ventosa circular com o próprio diâmetro do corpo, reforçada por um anel de cartilagem e armada com uma língua-raspadora igualmente cartilaginosa. Várias espécies de lampreia são consumidas como alimento”.
É assim que vem descrita na Wikipédia e parece-me uma boa descrição.
Elas vêm aí.
O instinto impele-as a percorrer milhares de quilómetros para virem desovar aos mesmos rios onde nasceram e fazerem as delícias dos seus apreciadores entre os quais me encontro.
As formas mais conhecidas de confeccionar o famoso ciclóstomo são o arroz de lampreia e a lampreia á bordalesa. Mas há outras. E a minha descoberta mais recente resultou numa verdadeira revelação que fez as papilas gustativas entoar um hino à boa culinária de raiz popular. Foi a feijoada de lampreia.
Eu gosto muito de feijão. Quer seja nas tripas, à transmontana, à brasileira, o arroz ou massa com feijão ou simplesmente uma boa sopa do mesmo. Sempre que tenho oportunidade não me coíbo de acrescentar mais um micromilímetros à minha respeitávelzita proeminência abdominal, ainda que me custe umas deslocações mais frequentes à casa de banho para espairecer.
Porém, aquele prato bem recheado de troços do saboroso agnatha, generosamente regados com molho feito com o respectivo sangue, vinho tinto e alho e salteados com feijão branco macio e aveludado fez esquecer tudo quanto de melhor, deste magnífico alimento, até agora a minha pança arrecadou.
Se lhe acrescentarmos umas cuncas de pinga do verde tinto, da boa, coisa que também muita gente desconhece, temos reunidos os ingredientes para superar, com um sorriso rasgado de orelha a orelha, os engulhos provocados por um malfadado golo de “porto” em tempo de (des)compensação.

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

A Queda de um Anjolas*

O rubicundo frade arfava como uma velha locomotiva e o calor da sua predicatória embevecia a plateia. Pela comissura dos lábios brotava-lhe um fio de espuma e umas gotas de suor tremeluzente criavam uma aura de santidade na sua enorme coroa.
Era uma semana de intensa evangelização, com cânticos, missas, rezas, comunhões e outros ofícios divinos, que congregava toda a comunidade paroquial, imbuída de fé e ávida da Palavra transmitida de forma arrojada e sábia pela boca daquele frade pertencente a uma congregação sedeada em Barroselas – os missionários passionistas.
Todas as madrugadas, ainda o Sol não dava sinais de vida, velhos e novos, homens e mulheres, abandonavam a quietação do cálido almadraque e rumavam até à Igreja Matriz para assistir e participar em mais um acto de devoção, abrilhantado pelo discurso vigoroso e enfático do anafado frade.
Naquele dia, o pequeno “rebanho” descia o Monte do Santo, pelo caminho florestal, circundado de espessos pinheiros que mais enegreciam a escura noite, cantando e rezando, numa clara demonstração de fé e de obediência ao seu pastor, sem necessitar de outra luz que não fosse a que lhe despontava da alma pura e cândida.
Então, algo estranho aconteceu que gerou uma enorme confusão no compacto grupo, fazendo vacilar os cânticos estridentes e pouco harmoniosos que as gargantas ainda ensonadas conseguiam produzir. No meio da desorientação geral, com gritos e pragas à mistura, várias pessoas rebolaram pelo chão e eu, sem saber donde vinha o castigo, fui contemplado com um enorme choque na testa que me fez perder o rumo e ver uma constelação inteira de estrelas, apesar de saber que nenhum luzeiro se vislumbrava através do tecto nebuloso e negro que cobria o firmamento.
Ainda pensei que era castigo divino por qualquer quebranto da minha devoção mas, quando me recompus da brutal bordoada enxerguei o vulto colossal e agigantado de um qualquer quadrúpede, mais desmedido ainda pela enorme carga que transportava em cima da albarda que lhe cobria o dorso, imóvel no meio do caminho.
Era uma das mulas do Zé da Arrieira que, àquela matinal hora lá ia carregada de graníticos esteios para as vinhas de um qualquer cliente de Lijó ou da Gave, sem outro farol que não fosse o seu instinto bestial e contra o topo de um dos quais eu tinha enfiado a minha frágil frontaria, agora enfeitada com um enorme “galo”.
Coimbra, 18 de Outubro 2001


Foto: Igreja paroquial de Riba de Mouro
* Era para ser Anjo mas para evitar plágios...

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade.

domingo, 22 de outubro de 2006

No "Baú" das Recordações

Por vezes, muitas vezes, sinto vontade de baixar a persiana, apagar a luz e mergulhar no “baú” das minhas recordações: retornar à infância cada vez mais longínqua, rever a luz do dia como uma esperança que renasce, olhar o horizonte e sentir vontade de o ultrapassar para ver que vidas existiam do outro lado, percorrer caminhos que já se apagaram, relembrar amigos nunca mais encontrados, familiares já desaparecidos, paisagens remodificadas… tanta coisa que parece nada mas que era toda uma vida cheia de ilusão, de fé e de confiança…
Mexo, remexo e no meio de tanta insignificância vão aparecendo imagens e cenas, pequenas peças de um puzle tão original que é a via das pessoas. Penso que não haverá no mundo presente, passado ou futuro dois quadros precisamente iguais… A vida é mesmo isso… uma tela em branco que se vai preenchendo dia a dia, umas vezes de tons alegres, outras de tons de cinza, uns dias a cores, outros a preto e branco, traços de tempo quente, outros de tempo frio, outros ainda de temperatura amena e suave e também os raios, os coriscos e as tempestades.
Não são apenas as mudanças sociais e ambientais que fazem a diferença. A idade também transforma as coisas e os nossos olhos cansados procuram um termo de comparação e adaptação ao presente. De mansinho sente-se o cansaço, o desalento, o esmorecer da chama. E também a força, a esperança, a fé. Acabamos por sofrer um processo de transformação lento e constante. Resistimos e acabamos por ceder. E concluímos que assim é que deve ser.
Então, o meu “Baú” é apenas um escape em face da dúvida, da adversidade ou da incerteza. É ali que muitas vezes encontro a energia que me abandona, o alento de que necessito para continuar a caminhada cujo termo é incerto mesmo tendo a certeza que um dia chegará.
A infância e a juventude marcam indelevelmente o resto da vida das pessoas. Admito que haja quem não goste de “regressar” às origens, há pessoas bem piores que animais e se não se pode exterminá-las, pelo menos podem-se ignorar (ou tentar). Para mim é um bálsamo que me conforta, o laço que me dá a paz de espírito, o sopro que me dá alento.
Há muitos anos que ando “desenraizado” e tenho conhecido muitos lugares, muita gente, muitas formas de ser e de estar, lugares onde me sinto bem, gentes com quem gosto de conviver, formas de ser e de estar que me garantem uma vida melhor. E no entanto, tudo que me rodeia continua a ser estranho, frio, distante. Pelo contrário, sempre que percorro os caminhos da minha juventude, vejo marcas familiares em tudo que os meus olhos divisam e algo me diz “bem-vindo a casa”. Há marcas que nos fazem crer que o tempo não passou por ali – a fonte donde bebíamos água pura e fresca, o roble secular que nos dava sombra e abrigava da chuva, o rochedo em que nos sentavamos para descansar, conversar ou simplesmente contemplar a paisagem, os sulcos cavados na rocha por inúmeras passagens das rodas ferradas dos carros de bois, o negro vestir daquelas mulheres para quem a vida sempre foi daquela cor.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Caminhos e Descaminhos

Em linha recta, Cavenca distará uns escassos cinco quilómetros da Baldossa, o último lugar ao cimo da Gave, já no limite com Parada do Monte. Contudo, o serpentear dos caminhos que era necessário percorrer para alcançar este lugar, faziam com que o percurso se alargasse para uns nove ou dez quilómetros.
Era preciso subir e descer encostas, atravessar riachos e córregos escuros, transpor recantos tenebrosos por meio do espesso arvoredo de carvalhos, castanheiros, pinheiros e outra vegetação arbórea, descrever as curvas de nível em estreitos e pedregosos carreiros desenhados ao longo do tempo por inúmeros passantes, tudo por um terreno ermo e desolado.
Pois foi esse o percurso que me propuseram fazer certa madrugada, em que minha madrinha Judite e minha irmã Anastasia decidiram ir à Espanha fazer compras, que era mais barato.
Na Baldossa juntavam-se a outras companheiras e, todas juntas, rumavam até Lamas do Mouro, passavam a raia seca em Rodeiro por caminhos de contrabandistas, faziam as compras e regressavam carregadas com a preciosa mercadoria, que não era mais do que bens essenciais para a sobrevivência das pessoas mas que se considerava um grave atentado à economia nacional. Isto se a Guarda Fiscal não aparecesse e lhes arrestasse tudo...
Após uma rápida soneca, acordei estremunhado com umas vigorosas pancadas na porta do pardieiro onde dormia e, resignado, vesti-me, tomei um cajado e uma lanterna cujo combustível era o azeite e, juntamente com as “contrabandistas”, pusemo-nos a caminho.
Em grupo a caminhada não era difícil e ao fim de pouco mais de duas horas estávamos na Baldossa, onde o resto do grupo esperava.
Como já não era mais preciso, despedi-me e iniciei a viagem de regresso. Só nessa altura me apercebi que eram três horas e meia da madrugada, uma hora boa para estar a dormir descansado.
Então, um calafrio de medo percorreu o meu corpo e comecei a pensar se seria avisado percorrer sozinho aquele itinerário, povoado sabe-se lá de que feras ou de coisas do outro mundo!...
Mas não tinha alternativa. A minha mente esforçava-se por apenas desenhar o estreito carreiro que me traria de volta ao lar mas não conseguia alhear-me da pavorosa escuridão que me rodeava, apenas vencida num raio de escassos centímetros pelo frouxo luzeiro da lanterna que pendia da mão crispada sobre a pega.
Decididamente meti-me a caminho.
O latido dos cães, misturado com alguns uivos lancinantes, fazia ainda mais tenebrosa a tenebrosa noite. Depressa deixei de ouvir qualquer sinal de vida para só ouvir o ressoar dos meus próprios passos.
Sempre perscrutando todos os recantos e ouvido atento a tudo que pudesse quebrar o silêncio da noite, caminhei o mais rápido que me era possível, na ânsia de acabar com o temor que me afligia e revolvia as entranhas mas parecia que a distância era agora maior. E tinha de passar por recantos medonhos: atravessar Fontaradeira, descer o monte da Gave, transpor a corga do Beche, o Couto do Moinho e finalmente o Pedregal. Tudo eram etapas que se iam sucedendo mentalmente umas às outras mas que demoravam uma eternidade a concretizar-se.
E quando algum pássaro batia as asas estremunhado ou algum pequeno animal nocturno fugia espavorido pelo restolho, mais eu tentava estugar o passo amedrontado.
Já o dia luzia quando cheguei ao lugar de origem.
O cheiro do fumo matinal que se espalhava pelo ar vindo das lareiras que começavam a acender-se nalgumas casas, o latido dos cães que eu já conhecia e o barulho dos tachos que se ouvia na rua trouxeram-me uma paz de espírito e uma tranquilidade indescritíveis.
Voltei para a cama e jurei que nunca mais sairia de casa sem ver que horas eram...
Coimbra, 18 de Fevereiro de 2002

terça-feira, 17 de outubro de 2006

O Descanso do Ruben

Em casa do Rogério ninguém se sentava à mesa sem o patriarca se certificar de que se encontrava toda a família.
Naquela noite, à hora do costume, barriga a dar horas, já todos rodeavam estrategicamente a mesa, ávidos de ferrar o dente no parco repasto, quando o Rogério, passando a vista em redor, dá pela falta do Ruben.
- Falta o Ruben, alguém viu o Ruben?
Ninguém sabia do Ruben.
Jantar adiado, toca a procurar pela vizinhança e pelos locais onde costumava parar. Afinal, nem podia estar longe, não era homem de falhar num momento daqueles, até porque chovia se deus a dava e não se podia andar na rua. Porém, nem sinais do Ruben.
Já estafado e a precisar de recuperar forças, o Vicente regressou a casa e serviu-se de uma tigela do saboroso carrascão que estava reservado para a ceia.
Encostou-se a um canto mais escuro, não fosse alguém entrar de repente e detectar a sua gula, quando lhe pareceu ouvir um ruído esquisito vindo do canto mais escuro da dependência onde se encontrava.
Desconfiado e receoso, perscrutou todos os cantos à procura da origem daquele estridente roncar, que mais parecia um velho e ferrugento serrote a cortar ferro, mas só vislumbrou a velha salgadeira. E a salgadeira não podia roncar...
Aproximou-se lentamente e o barulho parecia-lhe cada vez mais nítido. Só podia vir da salgadeira. Seria alguma porcina alma do outro mundo?
Num assomo de coragem, levantou a tampa do enorme caixote e qual não foi o seu espanto quando deparou com o Ruben, dormindo uma reconfortante soneca.
Dado o alerta, voltou toda a gente a reunir-se para o jantar e, já com o Ruben integrado na vasta prole, foi preciso explicar o sucedido.
A verdade é que, como a salgadeira já não continha qualquer naco do precioso bácoro, sua mãe tinha estado a lavá-la e a prepará-la para o reabastecimento, deixando a tampa aberta para secar. Então, o Ruben, num acesso de insaciável sede, atacou o vinho e foi bebê-lo para junto do caixote. Quando já estava devidamente saciado deu-lhe um quebranto e caiu para dentro da salgadeira. Com a trepidação, a respectiva tampa fechou-se, o que não afectou de algum modo o descanso do Ruben que, instantaneamente, adormeceu na paz dos anjos.
Coimbra, 16 de Novembro de 2001

PS – É uma história verídica, ainda da lembrança de muita gente. Em Monção, toda a gente acima dos 50s recorda os dois protagonistas – o Rogério e o Ruben – e o Vicente ainda vive para a testemunhar.

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Soneto do Pau Decifrado

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

Bocage

domingo, 15 de outubro de 2006

Eu...

Falar da mim é fácil e difícil. Fácil porque não há muito para dizer (o contrário também é verdade), difícil porque falar de nós é a coisa pior que nos pode acontecer. A imagem também não é muito elucidativa. Assim, que fazer?
Bom, vamos começar do início...
Nasci "nos confins do mundo", no lugar de Cavenca, freguesia de Riba de Mouro, concelho de Monção, no ano de 1953, a 25 de Março.
Sou o décimo e último de uma imensa prole espalhada pelos quatro cantos do mundo, como dizia orgulhosamente meu pai, de quem já falei no Banalidades.
Fiz a escolaridadde obrigatória, cumpri o serviço militar onde fui soldado CAR (o CAR - Condutor Auto Rodas - é muito importante porque eu nunca tinha pegado um volante) e tentei ir à procura da famosa "árvore das patacas" sem sucesso. A opção foi permanecer por cá e fazer pela vida. Ingressei na Guarda Nacional Republicana onde ainda permaneço mas quase a passar para o sótão, constituí família e divido a minha vida entre Coimbra, onde resido e trabalho e Mazedo, Monção, onde tenho a minha casa "de sonhos" e onde tenciono desfrutar do merecido descanso que a reforma me irá propiciar, isto se ainda for a tempo porque do jeito que isto vai, voltamos ao tempo em que era preciso trabalhar até morrer, coisa que para mim não é novidade mas muita gente já esqueceu ou pensa que nunca assim se viveu...
Muito mais do que isto eu poderia dizer mas isso não cabe numa mera apresentação e o resto irá aparecendo nos pequenos textos e histórias que por aqui e por ali ficam dispersos.
Humm... Bahhhh...

sábado, 14 de outubro de 2006

Retrato de uma Mulher

Há na história de Portugal factos, lendas e narrativas que nos falam de mulheres célebres as quais, pela sua intrepidez e coragem, assinalaram páginas de ouro nas crónicas dos séculos da nossa existência.
Certamente, já toda a gente ouviu falar de Deuladeu Martins, de Inês Negra, Filipa de Lencastre, a Padeira de Aljubarrota, a Maria da Fonte...
Muitas outras haverá que se não se tornaram tão célebres, não terá sido, certamente, pelo desmerecimento dos seus actos de bravura, de tenacidade e de generosidade.
Não é a memória das primeiras que aqui venho evocar mas sim a de uma outra heroína anónima, de quem guardo, no meu coração, um grande carinho, uma vasta admiração e uma enorme saudade.
Foi, como se diz na gíria, uma mulher de armas.
Com efeito, o seu destino foi traçado desde muito cedo, quando ainda adolescente, teve de substituir a mãe na criação dos irmãos mais novos, alguns de tenra idade, e na administração da casa paterna.
Não era alta nem baixa, mas parecia gigante, pela forma robusta do corpo e pela forma ampla do negro vestir.
Casou e deu existência a dez filhos, que teve de criar praticamente sozinha pois, o marido, devido a um grave acidente, ficou paralisado de uma perna para sempre e impossibilitado de angariar ou sequer colaborar na angariação dos meios de subsistência.
Apesar de tudo nunca desfaleceu, embora, por vezes, o ânimo quebrasse um pouco. Mais de uma vez a vi e ouvi chorar, meio perdida, sem saber o que arquitectar para fazer face ao sustento da casa. Porém, sem nunca perceber como, levantava-se e enfrentava a adversidade, fazendo-nos acreditar que era detentora de um poder infinito e que tudo conseguia resolver.
Não sabia ler, escrever ou contar mas fazia contas infalíveis, socorrendo-se sabe-se lá de que fórmulas ou regras matemáticas.
Desenvolvia e orientava todos os trabalhos do campo e fazia todo o trabalho doméstico, sempre de sol a sol e, nas longas e frias noites de inverno, à luz ténue da candeia a petróleo, tinha tempo para fiar o linho, a lã ou fazer outros lavores, contar histórias e até jogar cartas com a imensa prole que a rodeava.
Percorria dezenas de quilómetros, a pé, para ir fazer compras às feiras de Monção e dos Arcos de Valdevez, regressando do mesmo modo, com cargas imensas à cabeça e, muitas vezes, outra enorme carga no ventre.
O seu olhar penetrante e perspicaz via muito além do que estava perfeitamente visto e, quando descobria nos filhos alguma inocente mentira de garoto, dizia-nos e fazia-nos crer piamente que tinha um dedinho que adivinhava.
E quando precisou de desenhar o seu nome para receber a magra prestação social que lhe era abonada à custa de um filho que abraçou a carreira militar, não desfaleceu e tanto teimou que, sem saber qual o significado dos sarrabiscos que escrevia, tornou-se capaz de fazer face às exigências burocráticas que na Tesouraria da Fazenda Pública se lhe deparavam.
Sofrida mas conformada, viu partir os filhos, um após outro, à procura de vida melhor. Por fim, também ela partiu, numa viagem de aventura até ao Brasil, donde regressou pouco tempo depois, sob o pretexto de precisar pagar uma promessa a S. Bento do Cando, o Santo da sua devoção. Era tarde para mudar...
Bem hajas Mãe!
Coimbra, 15 de Novembro de 2001

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Reforma da AP e contenção orçamental

Quando tanto se fala de reformas na Administração Pública e vemos as medidas tomadas em Portugal nesse sentido, verificamos que estamos mais perto da América Latina do que da Europa Ocidental. O mesmo se diga em relação à Justiça e em relação à contenção orçamental cujo exemplo que vem de Itália, apesar de se considerar terra de mafiosos, nos faz sentir cada vez mais afastados da civilização.