sábado, 25 de novembro de 2006

Cheias

Choveu. Não é nenhuma novidade, atendendo a que estamos em tempo de chuva. Voltando a rebuscar nas minhas memórias longínquas, evoco os dias chuvosos e frios de outrora, dias e dias seguidos de chuva intensa que olhávamos das janelas desguarnecidas de vidraças, arrastando para os campos enormes quantidades de dejectos que os animais depositavam pelos caminhos e que serviam de fertilizante natural.
Ao fim de muitos dias de chuva sem parar vinham os estragos – os ribeiros que transbordavam, os valados que ruíam, as bolsas de água acumuladas no subsolo que rebentavam e arrastavam tudo por onde passasse a violenta enxurrada, árvores que caíam, penedos que se desprendiam e rolavam encosta abaixo… Era tempo de esvaziar os palheiros para alimentar os animais, de consumir os proventos acumulados no verão, formigas incansáveis sem tempo para folgar.
Mas de cheias não ouvíamos falar. Lá na minha terra não havia disso e as notícias não se difundiam na hora como actualmente. Mesmo assim, havia um cuidado extremo com a limpeza dos cursos de água, nalguns casos por receio da força da lei, em geral porque havia o sentimento de zelo que impelia as pessoas a se precaverem e a demonstrarem um respeito absoluto pelas forças da natureza. Era inconcebível ousar obstruir os cursos naturais da água ou opor-se ao estabelecimento de gateiras por onde se desviavam as águas pluviais para não danificarem os caminhos, únicas vias de comunicação que existiam na época e de vital importância para as populações.
Contudo, os tempos mudaram e, como disse o poeta, as vontades também. A memória é curta e cometem-se atropelos orográficos e ambientais de bradar aos céus. São esses atropelos que provocam muitos dos malefícios que ultimamente se têm feito sentir como consequência das fortes chuvadas.
Estranho é apenas o facto de em tão pouco tempo, mesmo tendo em conta a intensidade da chuva, ocorrerem enchentes como as que se verificaram nestes dias.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

O Baixinho

Naquele dia, uma segunda feira do mês de Fevereiro de 1986, o movimento ao cimo da Avenida Carvalho Araújo em Vila Real era normal e ninguém reparou no velho Land Rover cinzento da Guarda Nacional Republicana que acabava de estacionar em frente ao Tribunal. Porém, quando os seus ocupantes saíram da viatura e se dirigiam para a entrada do Palácio da Justiça, todos os olhares convergiram para a caricata figura do homenzinho ladeado de guardas rigorosamente fardados da cor do jeep, com os pulsos fortemente agrilhoados atrás das costas. Que crime teria cometido aquele minúsculo indivíduo para ali comparecer daquela arte?
O dia anterior fora dia de eleições presidenciais, por sinal, o corolário de uma das campanhas mais emotivas e que Mário Soares recordará como a sua maior vitória política de sempre ao derrotar surpreendentemente Freitas do Amaral à segunda volta.
Como era habitual em actos daquela natureza, todo o efectivo do Posto se encontrava concentrado no Quartel, pronto a responder de imediato a qualquer pedido de intervenção nas mesas de voto espalhadas pela respectiva área de acção.
Contudo, o dia decorreu sem qualquer incidente, em mais uma demonstração de enorme civismo da população duriense.
Urnas fechadas, era hora de contar os votos e promover a sua entrega no Governo Civil, tarefa que apenas implicava o empenhamento de dois ou três elementos policiais, preparando-se os restantes para regressar a casa a fim de retomarem as suas tarefas de rotina. Então, o telefone soou nervosamente, não augurando nada de bom. Era uma chamada para acorrer à localidade de Castedo onde havia sido cometido um homicídio.
Prontamente foi mobilizado um grupo de quatro guardas que a toda a pressa se deslocou à simpática localidade onde supostamente se dera o crime, a qual distava apenas uns seis quilómetros da sede do concelho.
Não foi difícil referenciar o local onde estava a vítima dada a aglomeração de pessoas na rua que mal viram aparecer o inconfundível jeep se insurgiram ostensivamente contra a força policial pela demora com que valeram ao pedido de intervenção.
Sem responder às provocações, apeei-me da viatura, indaguei do local onde se encontrava a vítima e dirigi-me para uma estreita viela pelo meio de uma pequena multidão consternada e estupefacta com o sucedido.
À entrada de uma velha casa de dois pisos que servia para guardar animais e recolher os produtos agrícolas, mesmo ao fundo de umas escadas em madeira que davam acesso ao piso superior, jazia na situação de decúbito dorsal uma jovem que não teria mais de vinte anos, lívida como a cera, os braços inertes ao longo do corpo e a cabeça ternamente apoiada no regaço de uma humilde mulher da plebe.
Ainda lhe tentei auscultar o pulso mas debalde. A mulher que sustentava a cabeça abanou negativamente a cachimónia como forma de censurar a minha ousadia de duvidar daquilo que me fora comunicado como certo.
De imediato ordenei que fossem convocadas as autoridades competentes com vista ao cumprimento das formalidades legais e dei início, no próprio local, às diligências de investigação.
Como já referi, a freguesia de Castedo do Douro dista cerca de seis quilómetros da sede do concelho – Alijó. Situa-se geograficamente num dos locais mais pitorescos da região duriense, em pleno coração da Região Demarcada do Douro, sobranceira ao rio que lhe dá o nome. É uma aldeia bonita e geralmente pacata, habitada por alguns ricos produtores de vinho generoso e outros agricultores, sendo na sua maioria pequenos proprietários que ao mesmo tempo exercem actividades ligadas ao cultivo do precioso néctar nas extensas propriedades dos primeiros.
Confesso que nunca nutri grande simpatia por aquelas gentes. Eram, salvo raras excepções, sorumbáticos, desagradáveis, sempre prontos a fazer justiça pelas próprias mãos, um perfeito contraste com a beleza natural de que desfruta a localidade.
Nesse dia, pela tarde fora, os jovens da aldeia promoveram um bailarico e divertiram-se alegre e descontraidamente.
Entre eles encontrava-se a jovem que agora jazia sem vida. Algum tempo antes tinha iniciado um namorico com um rapaz de uma aldeia vizinha mas havia uns dias que decidira pôr fim ao namoro e nessa tarde procurou divertir-se dançando ora com um, ora com outro dos rapazes ali presentes. E o antigo namorado, roído de ciúme, assistia ao folguedo tentando disfarçar a dor-de-cotovelo que tal folia lhe causava.
No fim da tarde tudo volve à normalidade e cada um regressa ao lar. Ciente dos seus deveres, a nossa jovem vai tratar dos animais e dirige-se à casa que se situa do outro lado da viela, quase em frente à casa onde morava com os pais e irmãos, subiu as escadas para recolher a ração e ao descer o ex-namorado esperava-a de caçadeira em punho.
Ninguém ouviu qualquer discussão, apenas um tiro. Os familiares que acorreram para ver o que se passava já a encontraram sem vida. As roupas estavam intactas e apenas uma enorme mancha de sangue revelava que os ferimentos mortais se situavam na parte inferior do abdómen.
Era noite e de nada servia tentar procurar o criminoso pelos sinuosos caminhos que ligavam Castedo a Cotas, uma aldeia vizinha onde residia o principal suspeito. Mesmo assim, uma patrulha dirigiu-se à casa dos pais para saber se ali se encontrava. Não estava em casa e os pais não sabiam dele.
Após a remoção do cadáver para a morgue regressamos à base. Eram duas horas da manhã quando me dirigi para casa, depois de dar instruções ao efectivo para reiniciarmos a investigação de madrugada.
Tentei em vão dormir. Pela minha mente perpassavam as imagens macabras do homúnculo, de espingarda em riste, a disparar selvaticamente sobre a vítima. Não uma mas duas, três, uma infinidade de vezes. Conhecera o protagonista desta narrativa algumas semanas antes, precisamente numa taberna da aldeia de Castedo do Douro, com uma cerveja na mão e ar de quem já tinha emborcado mais três ou quatro e despertou-me a atenção precisamente por causa do seu aspecto infantil, embora bem constituído fisicamente. Era baixinho, talvez um metro e quarenta, imberbe e disse-lhe que não podia permanecer naquele lugar por ser proibida a presença a menores de dezasseis anos. Perante uma gargalhada geral, fui informado que embora não o parecesse, o miúdo tinha dezoito anos de idade. Confirmei-o através do bilhete de identidade e gravei aquela figura no arquivo encefálico. Quando me foi descrito no dia em que se deu esta triste narração referenciei-o de imediato.
Ainda o sol não dava sinais de despontar no horizonte já me encontrava a pé para dar início a um dia de trabalho que se adivinhava exaustivo. Porém, fui logo informado de que o suspeito se encontrava em casa dos pais. Apenas lá chegamos, foi o próprio pai que o entregou e acompanhou até ao Posto de onde seguiu devidamente escoltado para o Tribunal.
Ficou em prisão preventiva.
Na audiência de julgamento ficou provado que era um jovem frio, reservado, de difícil relacionamento institucional e não demonstrou qualquer laivo de arrependimento. Foi ainda provado que foi a casa buscar a arma do crime, dirigiu-se de novo à aldeia onde morava a vítima e esperou-a na casa onde a assassinou, tendo para o efeito introduzido a arma por baixo das saias da vítima e disparado sobre o baixo ventre da desditosa jovem.
Foi condenado a dezoito anos de cadeia.

domingo, 5 de novembro de 2006

Mar Adentro

Mar adentro,
mar adentro.

Y en la ingravidez del fondo
donde se cumplen los sueños
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.

Un beso enciende la vida
con un relámpago y un trueno
y en una metamorfosis
mi cuerpo no es ya mi cuerpo,
es como penetrar al centro del universo.

El abrazo más pueril
y el más puro de los besos
hasta vernos reducidos
en un único deseo.

Tu mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras
'más adentro', 'más adentro'
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.

Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto,
para seguir con mi boca
enredada en tus cabellos.


Ramón Sampedro

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Coisas do Outro Mundo

Era um dia de Outono límpido e soleado. Eu e meu irmão (e padrinho) Daniel, após um frugal pequeno-almoço, jungimos as vacas ao carro e rumamos até ao Baloucal onde iríamos prover lenha para amenizar os rigores invernais, que nessa época não eram de brincadeira.
A toponímia regional é muito enigmática. Por mais que rebusque informação ou tente relacionar o nome com algo compreensível, não consigo descortinar forma de entender a designação “Baloucal” para aquele profundo e estreito tergo. Parece que poderia ser um sítio onde proliferassem muitas baloucas mas… o que é isso? O Baloucal era uma propriedade típica daquela subregião minhota, situada num vale profundo, cavado numa encosta dos contrafortes da Serra da Peneda. Numa vertente ficavam os lameiros de feno e pasto, na encosta oposta, mais sombria e íngreme, ficava um monte densamente povoado de castanheiros, carvalhos, vidoeiros e outras espécies inferiores, nomeadamente giestas e urzes.
Enquanto cortávamos a madeira e a carregávamos no carro, junto ao pequeno córrego cuja água límpida rumorejava ligeira em minúsculas cascatas, as vacas pastavam em liberdade, deliciando-se com as tenras ervas que brotavam do solo e espalharam-se sem rumo definido, pela encosta acima, perdendo-se da nossa vista no meio do arvoredo.
A luz solar, já mais abreviada devido à proximidade do solestício de Inverno, começava a dar sinais de esbatimento, acentuando ainda mais as sombras do arvoredo.
Durante a azáfama em que estávamos empenhados, tudo decorria quase automaticamente e não era necessário gastar palavras para cada um fazer o que lhe competia.
Contudo, algo pairava no ar que destoava do ambiente idílico e bucólico do local, algo que, vindo de algum lugar indefinido, penetrava nos meus ouvidos e ali permanecia dando por vezes a sensação de que provinha do interior do cérebro, e fazia com que ficasse cada vez mais atento ao que nos rodeava.
Não era a borbulhenta água que deslizava veloz pelo regato, não era a brisa do vento que sacudia a copa das árvores, não era ave ou animal bravio que por ali deambulava, também não era nada parecido com sons humanos… e parecia tudo isso…
Após dispor toda a carga em cima do chedeiro (nome que ainda é usado na Galiza para designar a mesa do carro de bois) e fortemente amarrada ao mesmo através de uma grossa corda de sisal esticada à força de braços, meu padrinho ordenou-me que fosse tocar as vacas encosta abaixo para lhes colocar a canga e jungir novamente ao carro.
Sem ripostar comecei a subir pela vertente acima mas aquele ameaçador som não parava de zurzir os meus ouvidos. Tentei, em vão, perscrutar por entre o arvoredo a origem de tal zoeira. Procurei relacioná-la com a chiadeira de outros carros de bois que poderiam rodar algures, por outros caminhos… mas nada. Aquilo era diferente de tudo que os meus ouvidos tinham sentido, era triste, lúgubre, assustador. Cheguei próximo do último animal que precisava bater encosta abaixo e num assomo de coragem subi para uma pequena rocha para mais uma vez me certificar donde vinha tão pungente choro. Nesse instante o volume daquele tenebroso lhanto incrementou-se, tornou-se ainda mais indecifrável e parecia aproximar-se de mim rapidamente. Um calafrio glacial percorreu o meu dorso e todos os cabelos do meu corpo se retesaram como os aguilhões de um ouriço-cacheiro. Sem delongas, desci a encosta, jungimos os animais ao carro e regressamos a casa.
O desconhecido carpido cessou tão misteriosamente como tinha surgido. Pelo caminho pensava no sucesso e fiquei com a convicção de que tudo não tinha passado de uma invenção minha.
Chegados a casa e depois de arrumar o gado e a lenha, retemperávamos forças com uma parca merenda de broa, chouriço e vinho, à conversa com a nossa mãe, quando inesperadamente meu irmão comentou que tínhamos regressado mais cedo do que seria normal porque “parecia que andava o diabo no monte”.
Nunca soube o que foi que ele ouviu nem se era idêntico ao que eu ouvia mas que era aterrador, lá isso era…

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Dia de Todos os Santos


Estão ali, transformados em pó e misturados com os sedimentos das rochas, os meus avós, pais, irmãos, sobrinhos, tios, primos, amigos…
Hoje é dia de lembrá-los…
Que descansem em paz.