segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Pessoa, Outra Vez...

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti…
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentado entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes,
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


Álvaro de Campos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

O Andar Miudiño


Éche un andar miudiño,
miudiño, miudiño,

miudiño, miudiño,
o que eu traio.


Que eu traio unha borracheira
de viño, que auga non bebo.
Mira, mira Maruxiña;
mira, mira, como eu veño.

Que eu traio unha borracheira
de viño, que auga non bebo.
Mira, mira Marauxiña,
mira, mira como veño.

Éche un andar miudiño,
miudiño, miudiño,
miudiño, miudiño,
o que eu traio.

Foto: http://static.flickr.com/23/27796107_8347091308_m.jpg
Letra: http://www.xente.mundo-r.com/anvi/exercicios_de_lingua/exercicios/
pasatempos/cantigas.htm


domingo, 14 de janeiro de 2007

A Vezeira

Vezeira: gado que se reveza com outro nas pastagens,
em regime de apascentação comunal
(Priberam – Dicionário de Língua Portuguesa On-Line)
.

Todos os dias, bem cedo, quer chovesse, quer fizesse sol, repetia-se o mesmo ritual. O despertar sucedia com a ténue luz do dia a espreitar teimosamente pelos estreitos buracos do telhado ou pelas frinchas das portadas das janelas, únicas guarnições que protegiam as casas das inclemências do tempo. Acendia-se a lareira para aquecer os corpos e a água de unto ou as papas de milho que serviam de pequeno almoço, preparava-se o farnel que iria prover o aconchego do estômago durante todo o dia e começava a reunião dos pequenos rebanhos individuais que em conjunto formavam a designada “bezeira”, como se diz em bom português do norte.
Era a rês* de Cavenca que demandava os montes baldios, enquadrada à vez por dois ou três pegureiros, que um só não dava conta do recado. De facto, eram muitas as cortes e cortelhos de onde saíam pequenas quantidades de gado miúdo, cabras e ovelhas, que ao chegar às fragas do Rochão constituíam um rebanho de respeito, com algumas centenas de cabeças de gado miúdo, o qual deixava um cheirete peculiar por onde passava e os caminhos e carreiros cobertos de caganitas, excrementos que as águas pluviais arrastavam para os campos, constituindo um fertilizante natural de grande valor para as terras.
Mal chegavam ao monte, começavam a pastar e percorriam enormes extensões de terreno até regressar ao mesmo lugar. O percurso era quase sempre igual: passavam o Mourim, por cima da Fonte do Barro, seguia pelo Furado até ao Rego Geraldo, depois, por baixo de Bogalheiras, a Ranha, os Canados, a Chão do Rego, Santo António de Val de Poldros, dava a volta pelo Chão dos Fentos, subia ao alto da Fraga e descia a encosta,
umas vezes pelo lado de Urzeda, quase sempre pelas encostas do Arroio, Fonte Boa e Chão da Aveleira.
Pelo percurso diariamente percorrido, não havia arbusto que resistisse à voracidade daqueles pequenos ruminantes. Até o tojo, que mais tarde viria a constituir o principal obstáculo para se penetrar nas florestas e um excelente meio de propagação dos fogos, não era capaz de crescer mais do que em pequenos e raros tufos que eram periodicamente cortados para acamar nas cortes onde o gado pernoitava e ali ser transformado em estrume.
A acção dos pegureiros não era fácil. Ela consistia em conduzir o rebanho de forma que não invadisse as propriedades particulares, evitar que alguma rês se tresmalhasse ou se misturasse às vezeiras de Modelos, de Santa Marinha ou de Parada do Monte, protege-lo dos raros mas sempre iminentes ataques do lobo e transportar as crias que nasciam pelo percurso, que por vezes eram bastantes. Se a isto tudo se juntasse um dia de chuva, e nevoeiro, e neve, e vento, o que era frequente no Inverno, então o grau de dificuldade aumentava exponencialmente e não raras vezes se extraviavam algumas cabeças que eram posteriormente recuperadas junto de outros rebanhos ou isoladas no monte ou, simplesmente, devoradas pelas feras.

A vezeira de Cavenca acabou do mesmo modo que se extinguiram outras actividades de montanha. E de nada serve tentar inculpar o cerco dos Serviços Florestais, ou a emigração, ou a Revolução de Abril. As coisas têm o seu percurso natural e por muitas recordações que estes tempos nos acarretem, há que reconhecer que era um tempo de muitas carências e de muitas dificuldades. Por isso, o êxodo seria uma fatalidade e o abandono das terras inevitável. A tentar resistir à tendência ainda perdurou por algum tempo uma pequena parceria em casa dos meus pais no Rochão com as Moucas, do Lume de Parada. Por fim também nós tivemos de vender o resto de um numeroso rebanho, que então se resumia a duas cabras e uma dezena de ovelhas. Fui, com a minha irmã Anastásia, vendê-las à feira da Portela do Alvite e renderam em conjunto, depois de muito regatear, a importância de 15 notas, se a memória não me atraiçoa. Para quem não sabe, eram notas de 100 escudos, seriam hoje sete euros e meio.

Durante muitos anos, por cima de Cavenca, foram visíveis desde muito longe os trilhos da rês, hoje cobertos de mato. Eram pequenos carreiros que convergiam para um trilho maior e este descrevia uma diagonal pela encosta, desde o Chão da Eirinha até desembocar, como um funil, num ponto determinado, no cimo da povoação. A partir dali, o rebanho ia-se diluindo, procurando cada rês o seu curral de forma instintiva e certeira.

* Rês é qualquer quadrúpede que serve de alimento ao homem. Porém, no Alto Minho, é comum designar-se por rês o rebanho de cabras e ovelhas e por gado as manadas de vacas ou bois.

Na Foto: Paisagem de Santo António de Val de Poldros

Coimbra, 14 de Janeiro de 2007

sábado, 6 de janeiro de 2007

O Senhor Grifo

Não era difícil entabular conversa com ele. O Café da Paz, local estrategicamente situado no Largo do Chafariz em Alijó e frequentado pelas elites locais onde se debatiam os assuntos de maior relevância e actualidade, era um dos sítios onde mais tempo permanecia, na companhia do seu inseparável amigo, Senhor Martinho.
Ambos tinham sido comerciantes de sucesso mas o tempo não perdoa e tiveram de entregar os negócios aos mais jovens. No caso do Grifo, foi o seu filho Luís que deu continuidade aos negócios do pai.
Era um estabelecimento comercial onde de tudo se vendia mas a organização do espaço não tinha nada a ver com os modelos actuais. Ali reinava o caos: pesticidas, ferragens, sementes, artigos escolares e de escritório, impressos da Imprensa Nacional Casa da Moeda, valores selados e as mais diversas utilidades domésticas disputavam o limitado espaço de forma tal que parecia impossível localizar qualquer produto que não estivesse perfeitamente visível. Contudo, o Luís Grifo não tinha a menor dificuldade em desencantar do meio daquela barafunda o que quer que lhe fosse solicitado. Tenho a certeza que se contratasse um técnico para lhe organizar o espaço de acordo com as modernas exigências do mercado o Luís ficaria perdido no meio de tanta ordem.
Mas o tema desta dissertação não é o filho mas o pai. Como dizia no início, a conversa com o Grifo fluía naturalmente e nunca faltava tema. Era uma figura popular, arreigado amante da sua terra, embora no Inverno rumasse a sul, para casa de uma filha no Algarve, que era um clima mais ameno e menos agressivo para as articulações, já bastante deformadas pelo decorrer dos anos.
E quando o tempo melhorava, lá voltava célere para a sua amada terra, para a companhia dos seus amigos. Então, sempre acompanhado pelo Sr. Martinho, percorria diariamente as principais artérias da Vila, da Avenida 25 de Abril até ao Bairro do Pombal, passando pelo Largo do Bispo de Viseu, Largo do Chafariz e Rua General Alves Pedrosa, da Avenida Sá Carneiro ao Bairro do Hospital, passando pelo Tribunal e Centro de Saúde. Os seus olhos, a disparar cada um para seu lado fruto de um antigo estrabismo (o que lhe dava muita vantagem porque nunca se sabia em que alvo se fixava), captavam tudo que se passava, de tal modo que estava sempre actualizado sobre o que ocorria na localidade.
Frequentemente passavam pelo posto policial, cumprimentavam o pessoal de serviço e, sem cerimónia, dirigiam-se ao comandante – bom dia senhor comandante, apresenta-se a patrulha à vila sem novidade… – e da mesma forma se despediam para não perturbar o trabalho, que por vezes era muito.
Não sei que habilitações académicas possuía, talvez a escolaridade obrigatória, mas os seus conhecimentos eram muitíssimo superiores. Das muitas coisas que lhe ouvi encantado, retive um poema que ele repetia com muita graça e penso que será este o único suporte material de um património imaterial que se perde irremediavelmente por não haver o cuidado de o preservar:
Há três coisas em Alijó
Que não há mais neste País:

Água no Chafariz,

O delegado era preto

E o padre era juiz.

Não importa a métrica, menos ainda a descoordenação dos tempos verbais. Seria imaginação ou teria mesmo ocorrido tal situação? Da trilogia referida apenas o chafariz lá estava e ainda está. Diziam que quem bebesse a água que dele emanava ficaria para sempre agarrado à terra. Eu não bebi e mesmo assim fiquei preso para sempre àquele recanto.
Na hora de recordar o meu amigo Grifo, aqui presto a minha homenagem à terra que ele tanto amava e que tão bem me acolheu.


Coimbra, 06 de Janeiro de 2007