A verdade porém é que também por lá havia alguns burros… Esse gene asinino manifestava-se frequentemente em pequenas “guerrilhas” de cariz paroquial ou associativo mas havia um evento onde uma estranha rivalidade unia toda a população: a festa da Senhora da Piedade.
A Senhora da Piedade é uma imagem enorme da Virgem, lacrimosa, com o filho Jesus ao colo depois de o terem descido da cruz. É também a designação do local onde tem uma pequena capela e onde permanece durante todo o ano, excepto nos dias da festa, local que constitui um magnífico miradouro sobre o vale do rio Pinhão e mesmo de terras de além Douro.
Todos os anos, no segundo fim-de-semana de Agosto, a festa da Senhora da Piedade faz acorrer a Sanfins inúmeras pessoas, quer sejam dali naturais mas que residem fora, quer das terras circunvizinhas, que procuram diversão e cumprir os votos pelas graças recebidas e que são muitas, a avaliar pelas avultadas oferendas angariadas.
Eram três dias e noites de muito trabalho a acompanhar os comissários nos diversos eventos, no ordenamento do trânsito, na manutenção da ordem, enfim, uma colaboração estreita tendo em vista que tudo decorresse da melhor forma, como era apanágio.
Uma das tradições mais peculiares era a arrematação do andor, isto é, obter o privilégio de carregar em ombros o andor da miraculosa Imagem. Para tal, organizavam-se dois grupos, os novos e os velhos, e ganhavam os que arrematassem o leilão pelo maior lanço, chegando a atingir, nos tempos que eu por lá andava, alguns milhares de contos.
Mas o ponto alto da festa era a majestosa procissão.
O cortejo tinha um itinerário perfeitamente demarcado e ao longo do mesmo aglomeravam-se centenas, milhares de pessoas, que ajoelhavam perante a passagem do andor e atiravam os seus donativos para um caixote previamente instalado na base da pesada liteira.
À frente do andor ia sempre a mesma personagem, o senhor Joaquim Cabeça, velho conhecedor dos usos e costumes, sempre atento a umas notas mal acondicionadas no caixotão ou pendentes de algumas mãos que lá não chegavam. As maiores dádivas eram pregadas no celestial manto da Senhora que assim ficava multicolorido, praticamente coberto de papéis provenientes das quatro partidas do mundo.
No final era costume o senhor Joaquim guardar todo o dinheiro, sem contar e mal acondicionado, em diversos sacos de tecido preto que, devidamente escoltado por três ou quatro agentes da autoridade, transportava para a sua residência e ali ficava guardado da sua mão até se fazer a contagem pela semana adiante.
Naquele ano foi decidida uma nova modalidade que foi transmitida por um elemento da comissão de festas, o senhor Porto Sampaio, ao comandante da força policial: o dinheiro seria recolhido em sacos dos CTT, com fecho de segurança, e guardado no cofre da Adega Cooperativa com toda a garantia.
Da nossa parte não havia quaisquer objecções. Se assim o decidiram estava bem decidido e só tínhamos que nos preocupar com a segurança das pessoas e bens.
Contudo, assim que o andor recolheu à Igreja constatei que algo não estava certo. Em torno do caixote do dinheiro e dentro de um círculo de segurança por nós delimitado, o senhor Joaquim Cabeça e o senhor Porto Sampaio, o primeiro com os sacos tradicionais e o segundo com os novos sacos verdes, procediam avidamente à recolha dos donativos, por entre alguns monólogos imperceptíveis, mais parecendo que estavam a disputar o abundante pecúlio.
Perante aquele cenário antecipei-me aos acontecimentos e ordenei: dois acompanham o senhor Joaquim Cabeça e os outros dois o senhor porto Sampaio.
Assim foi e, como sempre, não se registaram quaisquer incidentes.
Já em casa o senhor Joaquim, aliviado da pesada tarefa e enquanto nos deliciávamos com uma fatia de bola de carne e uma pinga da reserva pessoal, foi confessando as suas amarguras: que sempre tinha sido ele a fazer aquele serviço, que nunca tinha sido colocada em causa a sua integridade e honestidade, que sabia melhor do que ninguém como conduzir o cortejo de forma a obter mais donativos, que não merecia aquela desconsideração…
Penso que a intenção da comissão tinha mais a ver com a transparência do processo e até a própria protecção do senhor Joaquim do que com quaisquer dúvidas acerca da sua honorabilidade. Infelizmente assim não foi por ele aquilatado e a verdade é que há coisas, exigências de procedimentos modernos, que não são fáceis de entender por pessoas como o senhor Joaquim, um veterano membro da comissão cuja conduta nunca merecera qualquer reparo. E compreende-se.
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