sexta-feira, 26 de abril de 2013

N101

A Estrada Nacional 101 tem o seu início em Valença, passa em Monção, Arcos de Valdevez, Ponte da Barca, Vila Verde, Braga, Guimarães, Felgueiras, Amarante e termina em Mesão Frio.
Tem um traçado muito sinuoso (ainda há que se recorde das noventa e nove curvas nos dezoito quilómetros que perfazia entre Valença e Monção) mas foi, durante muitos anos, uma via estruturante que ligava as terras da raia ao coração do Minho, atravessava o Douro Litoral lá pelo interior e penetrava em Trás-os-Montes pelo Alto de Quintela até terminar já na região do Douro.

O percurso era tal como o descrevi e não havia margem para dúvidas, quer se circulasse em zonas rurais, quer em zonas urbanas, tais como Braga, Guimarães ou mesmo Amarante onde se confundiu, durante alguns anos, com a EN15 que ligava o Porto a Bragança. E ainda é mas com muitos remendos e variantes e nós e laços e laçadas e maus tratos de tal ordem que muito dificilmente se poderá refazer o trajecto de lés a lés sem o auxílio de mapas antigos ou mesmo de burros e boas botas para algumas caminhadas.
Enfim, mudam os tempos, mudam as vontades, a vida actual faz-se em contra-relógio e preferem-se as vias rápidas, mesmo tendo a noção de que pela velhinha N101 existem recantos de rara beleza, que proporciona sombras magníficas e fontes onde apetece sorver toda a frescura daquela água cristalina.
Mas o que me leva a discorrer sobre algo a que pouca gente liga importância é o facto de ter vindo a constactar a existência de placas toponímicas perfeitamente absurdas, em minha opinião, como seja: Estrada de Portela, Estrada de Barroças e Taias, e mais haverá que eu desconheço.
Não sei quem foram os "padrinhos" mas confesso que é uma toponímia de péssimo gosto, sendo certo que a designação "Estrada Nacional 101", ou simplesmente "N101", associada ao respectivo código postal não ofereceria quaisquer dúvidas.
Enfim...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Uma espécie de funcionário público (conclusão)

O senhor Antoninho apenas recuperou do letárgico coma em que foi induzido cerca de duas semanas após ter sido internado e submetido a várias intervenções cirúrgicas. Pela sua mente repassaram, dramáticas, as imagens dos últimos momentos de vida que o seu cérebro registou e tentou, em vão, conferir os danos causados pelo terrível ácido.
Olhou em volta e viu uma equipa de profissionais de saúde que parecia aguardar aquele momento com alguma ansiedade. As palavras que lhe dirigiram foram tranquilizadoras, as cirurgias efectuadas para reparar os tecidos destruídos estavam a resultar em pleno, embora persistissem sequelas físicas e estéticas para o resto da vida. Mas quando soube que dali em diante teria de fazer chichi sentado apeteceu-lhe morrer.
Acalmaram-no com um potente sedativo e voltou a afundar-se num sono profundo. Acordou muitas horas mais tarde mas recusou-se a abrir os olhos: queria certificar-se se estaria vivo ou morto. Sentiu algo a remexer-se ao seu lado e decidiu continuar de olhos fechados mas a curiosidade não lhe permitiu permanecer muito mais tempo naquela situação. Deparou então com a bela Gaby, sentada à cabeceira da cama, com um sorriso mais enigmático que o da Gioconda. Parecia mais velha, mais madura, e do seu semblante transparecia uma tranquilidade contagiante. Tentou sorrir-lhe mas apenas conseguiu fazer uma careta. Voltou a fechar os olhos e ficaram em silêncio por longos instantes…
Por fim a rapariga rompeu aquele mutismo ensurdecedor: como te sentes? – perguntou. Preferia ter morrido de uma vez – respondeu o Antoninho. A minha vida, daqui em diante, vai ser um inferno…
Voltaram a ficar silenciosos e novamente a Gabriela tomou a iniciativa:
– Pedi a transferência para Lisboa. Lá ninguém nos conhece e podemos fazer uma vida normal. Vou começar a trabalhar lá na próxima semana… Vamos ter um filho… Estou grávida…
– Estás louca? Queres acabar de me matar? Que vida é que queres levar comigo assim… um eunuco?
Novamente o silêncio reinou no exíguo espaço. Pela cabeça do homem perpassaram mil e um pensamentos. Como fora possível a sua vida dar uma tamanha reviravolta? Sempre fora um cidadão e funcionário respeitado na terra, tinha um projecto de vida bem conseguido e... de repente tudo foi por água abaixo, tudo por causa de um “rabo de saia”... Maldita a hora que aquela mulher ali tinha aparecido... E, no entanto, reconhecia que ela lhe abrira perspectivas de vida que já pensava terem-se desvanecido e viveram juntos momentos de extrema felicidade... E agora o que fazer? Um filho? Como foi possível tamanha irresponsabilidade? Quem vai responsabilizar-se pelo futuro dessa criança? Por outro lado... ainda não era assim tão velho e tinha todas as condições para se reformar, podia acompanhar a Gabriela para Lisboa mas... que qualidade de vida poderia dar à rapariga, jovem e cheia de vida, ele que apenas se poderia considerar homem por usar calças e cortar a barba?
– Não estás a sugerir que vá contigo para Lisboa, ou estás?
– Porque não? retorquiu a moça. Podes reformar-te e recomeçar uma nova vida longe de tudo que te recorde este incidente. Ajudas-me a criar e educar o nosso filho e depois..., como disse alguém, “felicidade (também) é ter prazer sem erecção”, concluiu com um sorriso malicioso.
Parecia que a rapariga lhe estava a ler os pensamentos e, pela primeira vez desde que adquirira consciência do sucedido, pressentiu uma réstia de esperança para a sua vida.
Passados três meses, o senhor Antoninho, já reformado e após ter entregue tudo que tinha aos filhos, partiu para Lisboa para se juntar à sua Gabriela, animado com a perspectiva de voltar a ser pai e com um novo projecto de vida em mente.
 E a Dorinda?
A Dorinda saiu do café onde acabara de cometer aquela barbaridade e vagueou sem destino durante vários dias. Alguém a encontrou numa aldeia próxima da sua residência toda andrajosa e morta de fome. Deram-lhe banho, roupas lavadas e comida e tentaram saber o que andava por ali a fazer mas a desgraçada mulher não dizia coisa com coisa.
Um conterrâneo que passava por lá e ouviu o que se passava reconheceu-a e avisou a Guarda. Foi presa e presente ao Juiz que, depois de a mandar submeter a exames clínicos, ordenou o seu internamento num hospício.
Ali viveu alguns anos como um vegetal, sem falar, sem se alimentar sozinha, sem ser capaz de cuidar da própria higiene pessoal.
Passava os dias e noites sentada numa cadeira, o olhar vazio perdido no infinito e só se lhe ouvia dizer, de vez em quando: se não for para mim não há-de ser para mais ninguém!