sábado, 10 de janeiro de 2009

Alveitar

"O comandante austríaco não respondeu imediatamente, a ideia de que teria de justificar perante viena e lisboa uma acção de tão drásticas consequências dava-lhe voltas à cabeça, e a cada volta lhe parecia mais complicada a questão. Por fim, julgou ter encontrado uma plataforma conciliatória, propor que lhe fosse permitido, a ele e aos seus homens, entrar no castelo para se certificarem do estado de saúde do elefante. Suponho que os seus soldados não são alveitares, respondeu o comandante português, quanto a vossa senhoria, não sei mas não creio que se tenha especializado na arte de curar bestas..."
José Saramago, A Viagem do Elefante, Caminho, 6.ª Edição, p. 138

Referi-me, no post "A dança das bruxas", a um acto praticado frequentemente no Alto Minho, sempre que se transaccionavam animais. E dizia eu que "alobeitar" era uma inspecção efectuada ao animal transaccionado mas que esse termo não constava dos dicionários por mim consultados.
De facto, tal como eu escrevi e como é pronunciado na região, não é possível encontrar tal palavra nem o seu significado.
A pista para entender o vocábulo empregue pela minha gente deu-ma Saramago através da discussão estabelecida em Figueira de Castelo Rodrigo entre os oficiais que comandavam as forças militares do Rei de Portugal e do Arquiduque da Áustria, incumbidos de escoltar e garantir a segurança do elefante no percurso entre Lisboa e Viena e que me permiti transcrever acima, com a devida vénia.
De facto, alveitar, do grego hippiatrós (veterinário) pelo árabe al-baitár (idem), pode ser um nome masculino que indica aquele que trata de doenças de animais sem diploma legal e também um verbo transitivo, regionalismo que descreve acções como indagar ou pesquisar.
Para os estudiosos da evolução da língua portuguesa e mesmo para os que, como eu, não a conhecendo tão bem, cresceram a ouvir fonemas e vocábulos distintos daqueles que se utilizam num nível de erudição mais elevado, torna-se fácil compreender a transformação gráfica e fonética que aqui se pretende investigar.
Se tivermos em conta que no norte a troca do “v” pelo “b” é uma constante e que a forma falada e escrita em castelhano é “albeitar”, resta-nos indagar apenas por que carga de água aparece ali um “o” entre o “l” e o “b”, ou “v”, se quiserem. Numa rápida revisão da matéria, aferimos que os fenómenos fonéticos que adicionam sons às palavras são a prótese, a epêntese e a paragoge, conforme se faça no princípio, no meio ou no fim, respectivamente. Neste caso, verifica-se a adição de um som no meio da palavra através da inclusão da consoante “o”. Não é um fenómeno raro, especialmente nos regionalismos, embora o mais comum seja a adição de sons consoantes. Por se tratar de uma vogal, a epêntese tem o nome mais particular de anaptixe e visa apenas facilitar a pronúncia.
Alveitares muito conhecidos na minha terra, Riba de Mouro, foram o Sr. Ernesto, do lugar de S. Miguel e o meu parente, algo remoto, Manuel Alves Romano, de Quartas, cujos conhecimentos veterinários se tornavam, muitas vezes, extensivos às pessoas.
Fica a explicação. O Povo não é tão ignorante como parece, ou quanto o pretendem fazer parecer certos doutores da mula ruça.

2 comentários:

Anónimo disse...

És de fato, um homem muito sábio! Parabéns!

Anónimo disse...

Caro Boaventura
Há quanto tempo não ouvia a expressão "doutor da mula ruça" (lol). Sempre lhe achei um piadão. Apesar de ir com alguma regularidade "lá riba", não sabia que a Casa do Crego tinha virado unidade de turismo rural (que bela ideia).
Por último, obrigado pela lição de português que acabas de dar (não me parece que possas, de todo,dizer que conheces mal a língua...)
Um abraço Ribamourense
A. Romano