Era um dia de Outono límpido e soleado. Eu e meu irmão (e padrinho) Daniel, após um frugal pequeno-almoço, jungimos as vacas ao carro e rumamos até ao Baloucal onde iríamos prover lenha para amenizar os rigores invernais, que nessa época não eram de brincadeira.
A toponímia regional é muito enigmática. Por mais que rebusque informação ou tente relacionar o nome com algo compreensível, não consigo descortinar forma de entender a designação “Baloucal” para aquele profundo e estreito tergo. Parece que poderia ser um sítio onde proliferassem muitas baloucas mas… o que é isso? O Baloucal era uma propriedade típica daquela subregião minhota, situada num vale profundo, cavado numa encosta dos contrafortes da Serra da Peneda. Numa vertente ficavam os lameiros de feno e pasto, na encosta oposta, mais sombria e íngreme, ficava um monte densamente povoado de castanheiros, carvalhos, vidoeiros e outras espécies inferiores, nomeadamente giestas e urzes.
Enquanto cortávamos a madeira e a carregávamos no carro, junto ao pequeno córrego cuja água límpida rumorejava ligeira em minúsculas cascatas, as vacas pastavam em liberdade, deliciando-se com as tenras ervas que brotavam do solo e espalharam-se sem rumo definido, pela encosta acima, perdendo-se da nossa vista no meio do arvoredo.
A luz solar, já mais abreviada devido à proximidade do solestício de Inverno, começava a dar sinais de esbatimento, acentuando ainda mais as sombras do arvoredo.
Durante a azáfama em que estávamos empenhados, tudo decorria quase automaticamente e não era necessário gastar palavras para cada um fazer o que lhe competia.
Contudo, algo pairava no ar que destoava do ambiente idílico e bucólico do local, algo que, vindo de algum lugar indefinido, penetrava nos meus ouvidos e ali permanecia dando por vezes a sensação de que provinha do interior do cérebro, e fazia com que ficasse cada vez mais atento ao que nos rodeava.
Não era a borbulhenta água que deslizava veloz pelo regato, não era a brisa do vento que sacudia a copa das árvores, não era ave ou animal bravio que por ali deambulava, também não era nada parecido com sons humanos… e parecia tudo isso…
Após dispor toda a carga em cima do chedeiro (nome que ainda é usado na Galiza para designar a mesa do carro de bois) e fortemente amarrada ao mesmo através de uma grossa corda de sisal esticada à força de braços, meu padrinho ordenou-me que fosse tocar as vacas encosta abaixo para lhes colocar a canga e jungir novamente ao carro.
Sem ripostar comecei a subir pela vertente acima mas aquele ameaçador som não parava de zurzir os meus ouvidos. Tentei, em vão, perscrutar por entre o arvoredo a origem de tal zoeira. Procurei relacioná-la com a chiadeira de outros carros de bois que poderiam rodar algures, por outros caminhos… mas nada. Aquilo era diferente de tudo que os meus ouvidos tinham sentido, era triste, lúgubre, assustador. Cheguei próximo do último animal que precisava bater encosta abaixo e num assomo de coragem subi para uma pequena rocha para mais uma vez me certificar donde vinha tão pungente choro. Nesse instante o volume daquele tenebroso lhanto incrementou-se, tornou-se ainda mais indecifrável e parecia aproximar-se de mim rapidamente. Um calafrio glacial percorreu o meu dorso e todos os cabelos do meu corpo se retesaram como os aguilhões de um ouriço-cacheiro. Sem delongas, desci a encosta, jungimos os animais ao carro e regressamos a casa.
O desconhecido carpido cessou tão misteriosamente como tinha surgido. Pelo caminho pensava no sucesso e fiquei com a convicção de que tudo não tinha passado de uma invenção minha.
Chegados a casa e depois de arrumar o gado e a lenha, retemperávamos forças com uma parca merenda de broa, chouriço e vinho, à conversa com a nossa mãe, quando inesperadamente meu irmão comentou que tínhamos regressado mais cedo do que seria normal porque “parecia que andava o diabo no monte”.
Nunca soube o que foi que ele ouviu nem se era idêntico ao que eu ouvia mas que era aterrador, lá isso era…
2 comentários:
Não sei se há Diabo mas se houver há-de certamente mostrar-se em locais assim ermos e escarpados como o que descreve.
Baloucal não será corruptela de Barrocal?
A configuração da paisagem descrita levou-me a pensar nisso.
Um abraço
Boa tarde.
Agradeço a participação e confesso que nunca me tinha ocorrido tal relação. A gente familiariza-se com determinados termos e raramente nos questionamos sobre a sua origem ou significado. Eu cada vez mais sou assaltado por dúvidas quanto ao verdadeiro sentido de muitas expressões usadas na minha região de origem e fico assombrado quando constacto que as mesmas fazem parte do léxico galego, um português ainda arcaizado.
Enviar um comentário