quinta-feira, 16 de novembro de 2006

O Baixinho

Naquele dia, uma segunda feira do mês de Fevereiro de 1986, o movimento ao cimo da Avenida Carvalho Araújo em Vila Real era normal e ninguém reparou no velho Land Rover cinzento da Guarda Nacional Republicana que acabava de estacionar em frente ao Tribunal. Porém, quando os seus ocupantes saíram da viatura e se dirigiam para a entrada do Palácio da Justiça, todos os olhares convergiram para a caricata figura do homenzinho ladeado de guardas rigorosamente fardados da cor do jeep, com os pulsos fortemente agrilhoados atrás das costas. Que crime teria cometido aquele minúsculo indivíduo para ali comparecer daquela arte?
O dia anterior fora dia de eleições presidenciais, por sinal, o corolário de uma das campanhas mais emotivas e que Mário Soares recordará como a sua maior vitória política de sempre ao derrotar surpreendentemente Freitas do Amaral à segunda volta.
Como era habitual em actos daquela natureza, todo o efectivo do Posto se encontrava concentrado no Quartel, pronto a responder de imediato a qualquer pedido de intervenção nas mesas de voto espalhadas pela respectiva área de acção.
Contudo, o dia decorreu sem qualquer incidente, em mais uma demonstração de enorme civismo da população duriense.
Urnas fechadas, era hora de contar os votos e promover a sua entrega no Governo Civil, tarefa que apenas implicava o empenhamento de dois ou três elementos policiais, preparando-se os restantes para regressar a casa a fim de retomarem as suas tarefas de rotina. Então, o telefone soou nervosamente, não augurando nada de bom. Era uma chamada para acorrer à localidade de Castedo onde havia sido cometido um homicídio.
Prontamente foi mobilizado um grupo de quatro guardas que a toda a pressa se deslocou à simpática localidade onde supostamente se dera o crime, a qual distava apenas uns seis quilómetros da sede do concelho.
Não foi difícil referenciar o local onde estava a vítima dada a aglomeração de pessoas na rua que mal viram aparecer o inconfundível jeep se insurgiram ostensivamente contra a força policial pela demora com que valeram ao pedido de intervenção.
Sem responder às provocações, apeei-me da viatura, indaguei do local onde se encontrava a vítima e dirigi-me para uma estreita viela pelo meio de uma pequena multidão consternada e estupefacta com o sucedido.
À entrada de uma velha casa de dois pisos que servia para guardar animais e recolher os produtos agrícolas, mesmo ao fundo de umas escadas em madeira que davam acesso ao piso superior, jazia na situação de decúbito dorsal uma jovem que não teria mais de vinte anos, lívida como a cera, os braços inertes ao longo do corpo e a cabeça ternamente apoiada no regaço de uma humilde mulher da plebe.
Ainda lhe tentei auscultar o pulso mas debalde. A mulher que sustentava a cabeça abanou negativamente a cachimónia como forma de censurar a minha ousadia de duvidar daquilo que me fora comunicado como certo.
De imediato ordenei que fossem convocadas as autoridades competentes com vista ao cumprimento das formalidades legais e dei início, no próprio local, às diligências de investigação.
Como já referi, a freguesia de Castedo do Douro dista cerca de seis quilómetros da sede do concelho – Alijó. Situa-se geograficamente num dos locais mais pitorescos da região duriense, em pleno coração da Região Demarcada do Douro, sobranceira ao rio que lhe dá o nome. É uma aldeia bonita e geralmente pacata, habitada por alguns ricos produtores de vinho generoso e outros agricultores, sendo na sua maioria pequenos proprietários que ao mesmo tempo exercem actividades ligadas ao cultivo do precioso néctar nas extensas propriedades dos primeiros.
Confesso que nunca nutri grande simpatia por aquelas gentes. Eram, salvo raras excepções, sorumbáticos, desagradáveis, sempre prontos a fazer justiça pelas próprias mãos, um perfeito contraste com a beleza natural de que desfruta a localidade.
Nesse dia, pela tarde fora, os jovens da aldeia promoveram um bailarico e divertiram-se alegre e descontraidamente.
Entre eles encontrava-se a jovem que agora jazia sem vida. Algum tempo antes tinha iniciado um namorico com um rapaz de uma aldeia vizinha mas havia uns dias que decidira pôr fim ao namoro e nessa tarde procurou divertir-se dançando ora com um, ora com outro dos rapazes ali presentes. E o antigo namorado, roído de ciúme, assistia ao folguedo tentando disfarçar a dor-de-cotovelo que tal folia lhe causava.
No fim da tarde tudo volve à normalidade e cada um regressa ao lar. Ciente dos seus deveres, a nossa jovem vai tratar dos animais e dirige-se à casa que se situa do outro lado da viela, quase em frente à casa onde morava com os pais e irmãos, subiu as escadas para recolher a ração e ao descer o ex-namorado esperava-a de caçadeira em punho.
Ninguém ouviu qualquer discussão, apenas um tiro. Os familiares que acorreram para ver o que se passava já a encontraram sem vida. As roupas estavam intactas e apenas uma enorme mancha de sangue revelava que os ferimentos mortais se situavam na parte inferior do abdómen.
Era noite e de nada servia tentar procurar o criminoso pelos sinuosos caminhos que ligavam Castedo a Cotas, uma aldeia vizinha onde residia o principal suspeito. Mesmo assim, uma patrulha dirigiu-se à casa dos pais para saber se ali se encontrava. Não estava em casa e os pais não sabiam dele.
Após a remoção do cadáver para a morgue regressamos à base. Eram duas horas da manhã quando me dirigi para casa, depois de dar instruções ao efectivo para reiniciarmos a investigação de madrugada.
Tentei em vão dormir. Pela minha mente perpassavam as imagens macabras do homúnculo, de espingarda em riste, a disparar selvaticamente sobre a vítima. Não uma mas duas, três, uma infinidade de vezes. Conhecera o protagonista desta narrativa algumas semanas antes, precisamente numa taberna da aldeia de Castedo do Douro, com uma cerveja na mão e ar de quem já tinha emborcado mais três ou quatro e despertou-me a atenção precisamente por causa do seu aspecto infantil, embora bem constituído fisicamente. Era baixinho, talvez um metro e quarenta, imberbe e disse-lhe que não podia permanecer naquele lugar por ser proibida a presença a menores de dezasseis anos. Perante uma gargalhada geral, fui informado que embora não o parecesse, o miúdo tinha dezoito anos de idade. Confirmei-o através do bilhete de identidade e gravei aquela figura no arquivo encefálico. Quando me foi descrito no dia em que se deu esta triste narração referenciei-o de imediato.
Ainda o sol não dava sinais de despontar no horizonte já me encontrava a pé para dar início a um dia de trabalho que se adivinhava exaustivo. Porém, fui logo informado de que o suspeito se encontrava em casa dos pais. Apenas lá chegamos, foi o próprio pai que o entregou e acompanhou até ao Posto de onde seguiu devidamente escoltado para o Tribunal.
Ficou em prisão preventiva.
Na audiência de julgamento ficou provado que era um jovem frio, reservado, de difícil relacionamento institucional e não demonstrou qualquer laivo de arrependimento. Foi ainda provado que foi a casa buscar a arma do crime, dirigiu-se de novo à aldeia onde morava a vítima e esperou-a na casa onde a assassinou, tendo para o efeito introduzido a arma por baixo das saias da vítima e disparado sobre o baixo ventre da desditosa jovem.
Foi condenado a dezoito anos de cadeia.

8 comentários:

Professor disse...

Ora dezoito com dezoito são trinta e seis, ainda pode cometer mais uns homicidiozinhos... Na cadeia não se aprende a ser humano,civilizado! Era melhor ficar lá para sempre.

Mas essa coisa dos crimes passionais foi coisa que nunca consegui compreender.
E parece que a lei até acha isso atenuante!

Eira-Velha disse...

Neste caso, tendo em conta a idade do dito, a pena foi bem pesada.Normalmente, a meio do cumprimento da pena, desde que tenham bom comportamento, são postos em liberdade condicional.
O baixote já deve ter saído há muito tempo da choldra... penso eu...

Adm disse...

Caro amigo, não sei qual o seu posto/cargo, no entanto, discordo de si quando caracteriza a gente da minha terra de "sorumbáticos, desagradáveis". Reconheço sim, que possa existir esse tipo de pessoas -como em todo lado- mas generalizar(???), bem sei que, mencionou "salvo raras excepções", mas este povo lutador, humilde e de grandes tradições, não merece que o ofendam de tal forma, por alguém sem qualquer tipo de reconhecimento para julgar, seja ele quem for. Terei o maior prazer, de pessoalmente -aqui em Coimbra- lhe poder descrever o são na realidade as pessoas da minha terra natal. Quanto ao crime, posso dizer-lhe que foi o mais horrendo de que há memória na freguesia, e ainda hoje -20 anos passados- se fala nele, porque a vitima era uma jovem respeitada, de extrema simplicidade, para além, de ser uma das principais impulsionadoras do Rancho Folclórico - na altura no seu auge- onde era considerada uma das melhores.

Eira-Velha disse...

Peço desculpa, Sr. Vilela. Não me passou pela cabeça ofender ninguém, muito menos julgar... quem sou eu para tal. Manifestei, isso sim, a minha opinião, que não pretendo seja caracterizadora da realidade local. Se retirarmos essa parte meramente pessoal, penso que o texto só realça a beleza do local e as virtualidades das suas gentes. Desde já fica o convite para um cafézito na Av. Dias da Silva, n.º 122.

Adm disse...

Caro Senhor acredito que não tenha tido qualquer intencionalidade de ofender esta população, no entanto deve reconhecer que, da forma como apresenta a sua opinião, pode levar a que os leitores tirem conclusões precipitadas e desajustadas da realidade. Ao mesmo tempo, estava a caracterizar uma população, bem sei que é a sua opinião, e respeito-a, mas discordo. Quanto à beleza local, penso que é unânime. Aceito com o maior prazer o convite para o café, basta que me transmita a sua disponibilidade para tal, porque desde já, retribuo o convite, mas em Castedo, para que “in loco” tenha uma percepção do que é na actualidade, Castedo do Douro. Mas também, para que possa desfrutar da nossa beleza natural e de todos os seus encantos, vinte anos depois.

Eira-Velha disse...

A minha disponibilidade para receber os amigos, Sr. Vilela, é permanente mas, para uma melhor definição, espero a sua visita no dia 18 do corrente, ás 10.00 horas, se não for inconveniente para si. O meu nome é verdadeiro e basta apresentar-se como meu convidado.
A minha ida a Castedo pode ser uma realidade a qualquer altura. O Douro, de onde mantenho gratas recordações, ocupa um lugar especial no meu coração.
Obrigado pela sua participação neste espaço e... volte sempre.

Anónimo disse...

Caro senhor, peço imensa desculpa, mas não me foi possível aparecer na hora que indicou. Um imprevisto atrasou-me mais do que estava à espera. Se no entanto, tiver disponibilidade para amanhã, à mesma hora, terei todo o gosto de aparecer.

Eira-Velha disse...

Cá fico a aguardar.
Até amanhã.