quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Em Janeiro Sobe ao Outeiro

“Em Janeiro sobe ao outeiro,
se vires verdejar põe-te a chorar,
se vires terrear põe-te a cantar”.


Ouvi muitas vezes, da boca de meu Pai, este velho provérbio que faz chegar até à actualidade os ecos da sabedoria popular, por transmissão oral, e sendo proferido por quem era, soava aos meus ouvidos como algo muito sério e de grande sapiência, cujo significado eu bem percebia excepto o da palavra terrear. E como não era “homem” para ficar com dúvidas, perguntava: - O que quer dizer terrear, Pai? Sem recurso a qualquer dicionário, ele esclarecia-me que ver terrear era ver os campos da cor da terra. – E isso é bom? É bom, sim, porque em Janeiro é tempo de fortes geadas e nevões que, além de destruir tudo que é verde, purifica a terra e prepara-a para na Primavera fazer desabrochar do seu ventre as sementes que lá repousam ou que as pessoas nela lançam para mais tarde recolher os frutos do seu trabalho. Pelo contrário, o verdejar em Janeiro significa que os rigores do Inverno virão mais tarde e será um ano de fraca produção agrícola.
Mas o outeiro de que fala o provérbio, para mim não era apenas a designação topográfica vaga e genérica de uma mera configuração do terreno, não. Ele era bem real e situava-se ao fundo de um enorme maciço rochoso designado por Couto da Coroa, ou Cotacroa, como vulgarmente o designávamos. O Outeiro era uma pequena Branda típica do Alto Minho, para onde os agricultores levavam o gado por meados de Junho, após a realização dos trabalhos agrícolas que esgotavam as pastagens e forragens arrecadadas no ano anterior. Ali permaneciam até princípio de Setembro, alimentando o gado nas pastagens dos baldios, do Furado até ao Rego do Geraldo e com tenra e perfumada erva segada nos campos de feno em volta das pequenas casas onde se abrigavam.
Já não existem brandeiros no Outeiro mas ainda me lembro bem de alguns que ali todos os anos repisavam os mesmos caminhos. O Chico Castelo, de Quartas, a Delmira de Rodas, do Freixo, a Inocência, de Cavenca
Todas as manhãs, ainda o sol repousava lá para os lados de levante, já eles subiam ao monte com o gado a pastar, recolhendo-o aos respectivos currais com a pança cheia de tenras ervas logo que o calor do sol se tornava mais inclemente. Após o almoço, reuniam-se à sombra de um carvalho secular, a conversar ou a dormir a sesta, retomando a actividade pela tardinha, quando o calor esmorecia.
Ia muitas vezes com meu Pai, em pequenino, ao Outeiro para tornar a água que pertencia a um pequeno poulo de feno que lá possuíamos e jamais esquecerei a alegria que cada vez que lá subíamos me invadia, principalmente na Primavera.
Meu Pai transformava cada viagem numa lição de vida: era uma pedra que colocava na parede de onde tinha caído, uma gateira que limpava para que a água da chuva não arruinasse o caminho, uma silve que aparava para desenvencilhar a passagem, outra pedra da calçada colocada no devido lugar para que os carros de bois não tombassem…Fazia instrumentos musicais com cascas de sanguinho e de castanheiro, construía carrinhos de brincadeira com rodas de cortiça e pequenos galhos de árvores, colhia frutos silvestres (amoras e cerejas) que eu comia deliciado, tudo acompanhado de descrições pormenorizadas, que conversar, para ele, era uma necessidade e um imenso prazer.
E na Primavera, os campos do Outeiro eram autênticos jardins, cobertos de feno e de flores silvestres, exalando um aroma inconfundível, por onde fervilhavam miríades de insectos, aves e répteis que impregnavam o ar de inúmeros sons.
O Outeiro ainda lá está mas já não tem a vida que tinha nesse tempo nem os meus olhos o vêm como outrora. Os brandeiros desapareceram, o velho carvalho já há muito foi abatido, alguns campos estão cobertos de mato. Mas quando lá tornar, ele há-de volver a ser como era. Basta fechar os olhos, libertar os sentidos e voltar atrás no tempo. E isso, só eu poderei fazê-lo.

Foto: Branda de Aveleira

Coimbra, 28 de Dezembro de 2006

domingo, 17 de dezembro de 2006

O Meu Natal

Está a chegar.
É uma festa mágica pelo simbolismo, pela luz, pela tradição, pelo espírito fraterno que mexe com as pessoas, pelo brilho nos olhos das crianças, pelas recordações…
O meu Natal tem tudo isso e … muito mais…
O meu Natal transporta-me sempre àquele tempo em que, acima de tudo, era o tempo de encher a barriga, não de mil e uma guloseimas, daquelas que enchem as bancas das grandes e pequenas superfícies comerciais mas de coisas básicas como o bacalhau com batatas, o arroz de polvo, os formigos, a “sopa” de bacalhau, que melhor sabia no dia seguinte convenientemente requentada, as rabanadas, simples fatias de pão de trigo embebidas em vinho tinto previamente fervido com açúcar e canela…
Nessa noite, o fogo da lareira também era especial. A lenha era criteriosamente seleccionada, grossas achas de carvalho que aqueciam o ambiente e as nossas almas. E o fumo que escorria pelas juntas dos negros cobertos de telha vã e se espraiava e desfazia lentamente pela encosta abaixo (sinal de bom tempo) criava um cenário digno da palete dos melhores artistas plásticos.
Ninguém ousava colocar sapatos na chaminé, nem peúgas, nem acalentar a esperança da chegada do Pai Natal. Sabíamos que aquele lugar não estava na rota desta personagem criada pela sociedade de consumo mas éramos felizes.
Felizes, sim. A felicidade é tanta coisa que pensar que é impossível é o maior dos equívocos humanos.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Cavenca

Situa-se no Distrito de Viana do Castelo, nas coordenadas 42°, 1', 60” de latitude Norte e 8° 18' de longitude Oeste. É a aldeia mais alta da freguesia de Riba de Mouro, com os seus 823 metros de altitude.
Cavenca está ali, no mapa.
No mapa e nas minhas recordações. Foi ali que adquiri a consciência do SER, num contexto político e social muito diferente do actual.
Eram tempos difíceis, aqueles em que eu me criei e diziam os mais velhos, lá saberiam porquê, que a minha geração já surgira num clima muito mais favorável.
Naquele tempo o dia tinha um tempo bem definido, do nascer ao pôr do sol. De seguida aconchegava-se o estômago com uma parca ceia e cama que se faz tarde, que no outro dia era dia de labuta.
Havia sempre que fazer. De Inverno, as mulheres fiavam o linho e a lã, urdiam as teias e fabricavam os bragais que guarneciam as camas, as mesas e os corpos das pessoas. Os homens ocupavam-se em trabalhos de construção civil: corte e serração de madeiras, talhe de granito, reparação e construção de casas e muros, limpeza de regos e levadas, pastoreio, mil e uma coisas…
No final do Inverno começavam as plantações e sementeiras, que terminavam em princípios de Junho. Depois era o cultivo, a rega, as segadas de feno, as colheitas dos cereais, semear o centeio, recolha de lenha e tojo e recomeçar o ciclo.
Os produtos do campo tinham valor e eram utilizados nas trocas comerciais. Mas o dinheiro era muito escasso. Por isso, era comum pessoas morrerem de apendicite, ou de pneumonia, ou de leucemia, ou de gripe. Nunca sem antes se aprontarem espiritualmente com os santos sacramentos, uma entranhada crença de que dali se partia para uma vida melhor… Não havia segurança social, nem sistemas de saúde, nem reformas, nem RSIs, nem subsídios de desemprego, nem apoios para arrancar oliveiras, ou plantar videiras, ou cultivar tomates, ou projectos fraudulentos, ou cursos de “formação”.
As vias de comunicação eram caminhos de pé ou de carros de bois, ora íngremes, ora suaves, umas vezes em terrenos abertos, outras formando profundas trincheiras à custa do uso e da erosão dos solos. A primeira estrada, se assim se poderia designar, que rasgou a serra desde Riba de Mouro até S. Bento do Cando, de Lamas do Mouro ao Mezio, foi construída pelos Serviços Florestais, os mesmos que geraram muitos empregos e se apoderaram dos imensos baldios, contribuindo definitivamente para a falência da melhor riqueza das populações serranas – a pastorícia.
Era tempo em que os usos e costumes faziam lei e a palavra de honra constituía melhor garantia que na actualidade um contrato redigido em cartório.
Saudades desse tempo? Não, apenas das recordações.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Bicarbonato de Sódio

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!


Álvaro de Campos