se vires terrear põe-te a cantar”.
Ouvi muitas vezes, da boca de meu Pai, este velho provérbio que faz chegar até à actualidade os ecos da sabedoria popular, por transmissão oral, e sendo proferido por quem era, soava aos meus ouvidos como algo muito sério e de grande sapiência, cujo significado eu bem percebia excepto o da palavra terrear. E como não era “homem” para ficar com dúvidas, perguntava: - O que quer dizer terrear, Pai? Sem recurso a qualquer dicionário, ele esclarecia-me que ver terrear era ver os campos da cor da terra. – E isso é bom? É bom, sim, porque em Janeiro é tempo de fortes geadas e nevões que, além de destruir tudo que é verde, purifica a terra e prepara-a para na Primavera fazer desabrochar do seu ventre as sementes que lá repousam ou que as pessoas nela lançam para mais tarde recolher os frutos do seu trabalho. Pelo contrário, o verdejar em Janeiro significa que os rigores do Inverno virão mais tarde e será um ano de fraca produção agrícola.Mas o outeiro de que fala o provérbio, para mim não era apenas a designação topográfica vaga e genérica de uma mera configuração do terreno, não. Ele era bem real e situava-se ao fundo de um enorme maciço rochoso designado por Couto da Coroa, ou Cotacroa, como vulgarmente o designávamos. O Outeiro era uma pequena Branda típica do Alto Minho, para onde os agricultores levavam o gado por meados de Junho, após a realização dos trabalhos agrícolas que esgotavam as pastagens e forragens arrecadadas no ano anterior. Ali permaneciam até princípio de Setembro, alimentando o gado nas pastagens dos baldios, do Furado até ao Rego do Geraldo e com tenra e perfumada erva segada nos campos de feno em volta das pequenas casas onde se abrigavam.
Já não existem brandeiros no Outeiro mas ainda me lembro bem de alguns que ali todos os anos repisavam os mesmos caminhos. O Chico Castelo, de Quartas, a Delmira de Rodas, do Freixo, a Inocência, de Cavenca …
Todas as manhãs, ainda o sol repousava lá para os lados de levante, já eles subiam ao monte com o gado a pastar, recolhendo-o aos respectivos currais com a pança cheia de tenras ervas logo que o calor do sol se tornava mais inclemente. Após o almoço, reuniam-se à sombra de um carvalho secular, a conversar ou a dormir a sesta, retomando a actividade pela tardinha, quando o calor esmorecia.
Ia muitas vezes com meu Pai, em pequenino, ao Outeiro para tornar a água que pertencia a um pequeno poulo de feno que lá possuíamos e jamais esquecerei a alegria que cada vez que lá subíamos me invadia, principalmente na Primavera.
Meu Pai transformava cada viagem numa lição de vida: era uma pedra que colocava na parede de onde tinha caído, uma gateira que limpava para que a água da chuva não arruinasse o caminho, uma silve que aparava para desenvencilhar a passagem, outra pedra da calçada colocada no devido lugar para que os carros de bois não tombassem…Fazia instrumentos musicais com cascas de sanguinho e de castanheiro, construía carrinhos de brincadeira com rodas de cortiça e pequenos galhos de árvores, colhia frutos silvestres (amoras e cerejas) que eu comia deliciado, tudo acompanhado de descrições pormenorizadas, que conversar, para ele, era uma necessidade e um imenso prazer.
E na Primavera, os campos do Outeiro eram autênticos jardins, cobertos de feno e de flores silvestres, exalando um aroma inconfundível, por onde fervilhavam miríades de insectos, aves e répteis que impregnavam o ar de inúmeros sons.
O Outeiro ainda lá está mas já não tem a vida que tinha nesse tempo nem os meus olhos o vêm como outrora. Os brandeiros desapareceram, o velho carvalho já há muito foi abatido, alguns campos estão cobertos de mato. Mas quando lá tornar, ele há-de volver a ser como era. Basta fechar os olhos, libertar os sentidos e voltar atrás no tempo. E isso, só eu poderei fazê-lo.
Foto: Branda de Aveleira