sábado, 6 de janeiro de 2007

O Senhor Grifo

Não era difícil entabular conversa com ele. O Café da Paz, local estrategicamente situado no Largo do Chafariz em Alijó e frequentado pelas elites locais onde se debatiam os assuntos de maior relevância e actualidade, era um dos sítios onde mais tempo permanecia, na companhia do seu inseparável amigo, Senhor Martinho.
Ambos tinham sido comerciantes de sucesso mas o tempo não perdoa e tiveram de entregar os negócios aos mais jovens. No caso do Grifo, foi o seu filho Luís que deu continuidade aos negócios do pai.
Era um estabelecimento comercial onde de tudo se vendia mas a organização do espaço não tinha nada a ver com os modelos actuais. Ali reinava o caos: pesticidas, ferragens, sementes, artigos escolares e de escritório, impressos da Imprensa Nacional Casa da Moeda, valores selados e as mais diversas utilidades domésticas disputavam o limitado espaço de forma tal que parecia impossível localizar qualquer produto que não estivesse perfeitamente visível. Contudo, o Luís Grifo não tinha a menor dificuldade em desencantar do meio daquela barafunda o que quer que lhe fosse solicitado. Tenho a certeza que se contratasse um técnico para lhe organizar o espaço de acordo com as modernas exigências do mercado o Luís ficaria perdido no meio de tanta ordem.
Mas o tema desta dissertação não é o filho mas o pai. Como dizia no início, a conversa com o Grifo fluía naturalmente e nunca faltava tema. Era uma figura popular, arreigado amante da sua terra, embora no Inverno rumasse a sul, para casa de uma filha no Algarve, que era um clima mais ameno e menos agressivo para as articulações, já bastante deformadas pelo decorrer dos anos.
E quando o tempo melhorava, lá voltava célere para a sua amada terra, para a companhia dos seus amigos. Então, sempre acompanhado pelo Sr. Martinho, percorria diariamente as principais artérias da Vila, da Avenida 25 de Abril até ao Bairro do Pombal, passando pelo Largo do Bispo de Viseu, Largo do Chafariz e Rua General Alves Pedrosa, da Avenida Sá Carneiro ao Bairro do Hospital, passando pelo Tribunal e Centro de Saúde. Os seus olhos, a disparar cada um para seu lado fruto de um antigo estrabismo (o que lhe dava muita vantagem porque nunca se sabia em que alvo se fixava), captavam tudo que se passava, de tal modo que estava sempre actualizado sobre o que ocorria na localidade.
Frequentemente passavam pelo posto policial, cumprimentavam o pessoal de serviço e, sem cerimónia, dirigiam-se ao comandante – bom dia senhor comandante, apresenta-se a patrulha à vila sem novidade… – e da mesma forma se despediam para não perturbar o trabalho, que por vezes era muito.
Não sei que habilitações académicas possuía, talvez a escolaridade obrigatória, mas os seus conhecimentos eram muitíssimo superiores. Das muitas coisas que lhe ouvi encantado, retive um poema que ele repetia com muita graça e penso que será este o único suporte material de um património imaterial que se perde irremediavelmente por não haver o cuidado de o preservar:
Há três coisas em Alijó
Que não há mais neste País:

Água no Chafariz,

O delegado era preto

E o padre era juiz.

Não importa a métrica, menos ainda a descoordenação dos tempos verbais. Seria imaginação ou teria mesmo ocorrido tal situação? Da trilogia referida apenas o chafariz lá estava e ainda está. Diziam que quem bebesse a água que dele emanava ficaria para sempre agarrado à terra. Eu não bebi e mesmo assim fiquei preso para sempre àquele recanto.
Na hora de recordar o meu amigo Grifo, aqui presto a minha homenagem à terra que ele tanto amava e que tão bem me acolheu.


Coimbra, 06 de Janeiro de 2007

4 comentários:

Rubia disse...

por acaso, Alijo é 1 das poucas terras q n conheço neste Portugal... mas pelos vistos, é 1 terra com mto pa contar. Gostei paricularmente da quadra do sr. Grifo (só o nome...valha-m Deus!)

Eira-Velha disse...

Obrigado pela visita, rubia! O nosso Portugal é uma terra de encantos e muitos recantos... que npos estão constantemente a surpreender. Aqui tento aguçar a curiosidade dos meus leitores para um recanto especial, Riba de Moura em geral e Cavenca em especial, vai até lá e conta-me o que viste...
Volta sempre...

Anónimo disse...

Sou de Alijó,embora me encontre a residir em Lisboa, já há dez anos, lembro-me perfeitamente do Sr. Grifo, e do filho, quando era pequena e vinha da escola, ao passar ao pé do café da paz, se o encontrava lá tinha eu que esticar a mão e começava o Sr. Grifo a perguntar: Comes-te o arroz todo? Não comi arroz!, Então estava boa a massa? Também não comi massa!Bem e continuava até que acabava por contar o que tinha comido! Eu eu e todos os outros coleguinhas! Era a sua maneira pacata de de brincar com todas as crianças, que ali passavam!Parabéns pela boa recordação! Carv.

Anónimo disse...

E hoje que é o dia do sorriso, nem de proposito, encontrei este post que me pôs de sorriso rasgado!!!Obrigada ao autor.O Sr. Grifo faz parte das lembranças felizes da minha infância, uma pessoa fantástica e de uma criatividade difícil de encontrar em pessoas da sua época.Decorei com ele várias lenga lengas, todas elas sobre Alijó e suas "atracções",que na escola eram ditas como rosários por nós os seguidores do Sr. Grifo...ah esqueci-me de dizer que em troca de as sabermos de cor recebiamos uma guloseima e um beijinho do Sr. Grifo ahahahaha...Obrigada!!!

Estela Magalhães