domingo, 14 de janeiro de 2007

A Vezeira

Vezeira: gado que se reveza com outro nas pastagens,
em regime de apascentação comunal
(Priberam – Dicionário de Língua Portuguesa On-Line)
.

Todos os dias, bem cedo, quer chovesse, quer fizesse sol, repetia-se o mesmo ritual. O despertar sucedia com a ténue luz do dia a espreitar teimosamente pelos estreitos buracos do telhado ou pelas frinchas das portadas das janelas, únicas guarnições que protegiam as casas das inclemências do tempo. Acendia-se a lareira para aquecer os corpos e a água de unto ou as papas de milho que serviam de pequeno almoço, preparava-se o farnel que iria prover o aconchego do estômago durante todo o dia e começava a reunião dos pequenos rebanhos individuais que em conjunto formavam a designada “bezeira”, como se diz em bom português do norte.
Era a rês* de Cavenca que demandava os montes baldios, enquadrada à vez por dois ou três pegureiros, que um só não dava conta do recado. De facto, eram muitas as cortes e cortelhos de onde saíam pequenas quantidades de gado miúdo, cabras e ovelhas, que ao chegar às fragas do Rochão constituíam um rebanho de respeito, com algumas centenas de cabeças de gado miúdo, o qual deixava um cheirete peculiar por onde passava e os caminhos e carreiros cobertos de caganitas, excrementos que as águas pluviais arrastavam para os campos, constituindo um fertilizante natural de grande valor para as terras.
Mal chegavam ao monte, começavam a pastar e percorriam enormes extensões de terreno até regressar ao mesmo lugar. O percurso era quase sempre igual: passavam o Mourim, por cima da Fonte do Barro, seguia pelo Furado até ao Rego Geraldo, depois, por baixo de Bogalheiras, a Ranha, os Canados, a Chão do Rego, Santo António de Val de Poldros, dava a volta pelo Chão dos Fentos, subia ao alto da Fraga e descia a encosta,
umas vezes pelo lado de Urzeda, quase sempre pelas encostas do Arroio, Fonte Boa e Chão da Aveleira.
Pelo percurso diariamente percorrido, não havia arbusto que resistisse à voracidade daqueles pequenos ruminantes. Até o tojo, que mais tarde viria a constituir o principal obstáculo para se penetrar nas florestas e um excelente meio de propagação dos fogos, não era capaz de crescer mais do que em pequenos e raros tufos que eram periodicamente cortados para acamar nas cortes onde o gado pernoitava e ali ser transformado em estrume.
A acção dos pegureiros não era fácil. Ela consistia em conduzir o rebanho de forma que não invadisse as propriedades particulares, evitar que alguma rês se tresmalhasse ou se misturasse às vezeiras de Modelos, de Santa Marinha ou de Parada do Monte, protege-lo dos raros mas sempre iminentes ataques do lobo e transportar as crias que nasciam pelo percurso, que por vezes eram bastantes. Se a isto tudo se juntasse um dia de chuva, e nevoeiro, e neve, e vento, o que era frequente no Inverno, então o grau de dificuldade aumentava exponencialmente e não raras vezes se extraviavam algumas cabeças que eram posteriormente recuperadas junto de outros rebanhos ou isoladas no monte ou, simplesmente, devoradas pelas feras.

A vezeira de Cavenca acabou do mesmo modo que se extinguiram outras actividades de montanha. E de nada serve tentar inculpar o cerco dos Serviços Florestais, ou a emigração, ou a Revolução de Abril. As coisas têm o seu percurso natural e por muitas recordações que estes tempos nos acarretem, há que reconhecer que era um tempo de muitas carências e de muitas dificuldades. Por isso, o êxodo seria uma fatalidade e o abandono das terras inevitável. A tentar resistir à tendência ainda perdurou por algum tempo uma pequena parceria em casa dos meus pais no Rochão com as Moucas, do Lume de Parada. Por fim também nós tivemos de vender o resto de um numeroso rebanho, que então se resumia a duas cabras e uma dezena de ovelhas. Fui, com a minha irmã Anastásia, vendê-las à feira da Portela do Alvite e renderam em conjunto, depois de muito regatear, a importância de 15 notas, se a memória não me atraiçoa. Para quem não sabe, eram notas de 100 escudos, seriam hoje sete euros e meio.

Durante muitos anos, por cima de Cavenca, foram visíveis desde muito longe os trilhos da rês, hoje cobertos de mato. Eram pequenos carreiros que convergiam para um trilho maior e este descrevia uma diagonal pela encosta, desde o Chão da Eirinha até desembocar, como um funil, num ponto determinado, no cimo da povoação. A partir dali, o rebanho ia-se diluindo, procurando cada rês o seu curral de forma instintiva e certeira.

* Rês é qualquer quadrúpede que serve de alimento ao homem. Porém, no Alto Minho, é comum designar-se por rês o rebanho de cabras e ovelhas e por gado as manadas de vacas ou bois.

Na Foto: Paisagem de Santo António de Val de Poldros

Coimbra, 14 de Janeiro de 2007

3 comentários:

Anónimo disse...

Por falar em vezeira e na vida difícil que as nossa gentes levavam, deixo-te aqui os Montes de Bordença do meu Site e vê como o Ventor me conta coisas sobre as vezeiras. E olha que foi só um dia, mas o Ventor disse-me que foi o pior de todos. http://adrao.com.sapo.pt/page12.htm
Tens aí um belo texto, sobre as vezeiras e que muita malta miúda e graúda devia ler para saberem como era a vida de seus avós ou ainda de seus pais. Falas de coisas que eu ainda não falei e que o Ventor me tem contado. Falas de papas de milho (o Ventor gostava delas com o bom leite da Ribeira) da sopa d'unto, e dos trilhos das cabras. Se olhares o monte de Adrão por cima da aldeia, foto antiga, com o monte rapado, verificarás como a montanha era moldada.
Um abraço.

Anónimo disse...

Àgua D ùnto e caldo de leite

Anónimo disse...

Parabéns, por este blog, e este artigo, bem argumentado, e completo..