domingo, 18 de fevereiro de 2007

As Vacas

Por sorte, a vaca não tem apelidos de família para lhe complicarem a existência (…).
As vacas chamam-se e os donos das vacas apelidam-se. A vaca é “Pomba”, “Estrela”, “Aurora” ou “Vitória” como uma pessoa podia ser apenas José, Maria, Luís ou Judite.


Almada Negreiros, Nome de Guerra

Não é só na Índia que as vacas são veneradas. Também no Alto Minho, noutros tempos mais do que agora, elas constituíam uma espécie de ícones sagrados sem os quais a vida seria impossível.
As vacas da minha infância tinham nome próprio. Eram a Bonita, a Nova, a Pisca, a Cabana, a Briosa, a Galharda, a Galante, a Formosa, a Cereja, a Fidalga, a Carola, a Carouca…
Eram vacas como as de agora, mas a quantidade e a qualidade revelavam o poder económico dos respectivos donos. De facto, elas constituíam um poderoso esteio que suportava a vida das pessoas.
Vacas porquê? Porque davam leite para a alimentação dos donos, serviam de tracção para todos os trabalhos agrícolas, pariam os vitelos que eram vendidos nas feiras, cuja renda servia para abastecer de vestuário e géneros alimentares e até a bosta era aproveitada para fertilizar as terras e também para tapar a porta do forno onde se cozia a broa…
Os mais abastados compravam vacas e entregavam-nas a terceiros “ao ganho”, uma forma de rentabilização do capital que não carecia de escrituras ou contratos, era a palavra de honra que vinculava não só quem celebrava o pacto mas também os próprios herdeiros. O negócio tinha por base o capital inicial, ou seja, o custo da vaca. A partir daí o detentor da vaca era obrigado a cuidar do animal como se fosse seu de pleno direito e entregava ao investidor metade do que rendessem as crias e do excedente ao capital investido quando fosse alienado.
Na minha terra, a relação entre as vacas e as pessoas era muito estreita. Tão estreita que ficávamos com a sensação de que os animais se pareciam com o dono, à força de estabelecermos a ligação entre uns e outros. Claro que, salvo raras excepções, nenhum animal de grandes chifres se parece a uma pessoa, mas a verdade é que, identificar o dono de um quadrúpede bovino no meio de uma manada de algumas dezenas, seria tarefa impossível para alguém desconhecedor do meio mas para nós era a coisa mais banal deste mundo.
E as vacas também conheciam o dono… bastava chamá-las pelo nome que elas obedeciam prontamente ás ordens dadas, fosse para puxar com mais alento, fosse para afrouxar nas descidas, para voltar à esquerda ou á direita, ou simplesmente para lhes fazer uma festa no focinho ou no dorso.
As vacas da minha terra eram animais de uma generosidade extraordinária.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2007

1 comentário:

saloia disse...

....pois eram Boaventura! Eu lembro-me quando passava ferias em Paredes do Vale havia tantas tantas. Agora poucas. Passavam umas semanas e elas já me conheciam ao ponto de deixar dar festinhas e obdecer os comandos. Adorava ir com as minhas amigas da aldeia para o campo com elas e passar os dias de verão a sonhar naqueles montes.

beijinhos
Mary