sábado, 16 de junho de 2007

O Padrinho

Não foi a última vez que o vi mas foi a última vez que o vi com vida. Acompanhado pelo nosso cunhado Hipólito, subia vagarosamente a calçada para tomar o carro de praça que o havia de levar à cidade do Porto para uma intervenção cirúrgica, da qual nunca mais recuperou. Eu encontrava-me numa tarefa árdua e importante, no pequeno quinteiro em frente da casa paterna, a substituir o eixo de um dos carros de bois da nossa “frota” e eles sorriram da minha ousadia, porque era trabalho para peritos na arte da carpintaria e eu era apenas um curioso. Sorriram e continuaram a caminhada sem um “até logo”, que despedidas nunca fizeram parte dos nossos hábitos.
Nós deveríamos ter desconfiado daquele regresso inesperado de terras gaulesas onde amealhara um invejável pé-de-meia mas a alegria de o ver entre nós não deixava margem para cogitações. Tudo parecia normal, excepto aquela visível tristeza, o olhar vago e distante, a contrastar com a força e a vivacidade que lhe eram peculiares.
Do Porto regressaria algumas semanas depois apenas para dar o último suspiro na casa onde nascera e que durante os seus trinta e cinco anos de vida ajudara a sustentar.
Era meu irmão e padrinho de baptismo e tanto eu como os restantes membros do agregado familiar tínhamo-nos habituado a venerá-lo e respeitá-lo como um verdadeiro chefe de família porque, na verdade, ele tornou-se naturalmente a “trave mestra” da casa por ser mais velho e porque o nosso pai ficara fisicamente impossibilitado de desempenhar esse papel desde que um fatídico acidente o deixou estropiado para o resto da vida.
Esse sentido de responsabilidade marcou-o para a sua curta vida e vincou no seu rosto, de feições angulosas e correctas, os estigmas de um homem sério e trabalhador.
Não era homem para folganças, encarava tudo com uma seriedade voluntária, simples e competente e era detentor de uma força e de uma generosidade incomensurável.
Quando, já tardiamente em relação a outros do seu tempo, decidiu procurar vida melhor em França e comunicou essa decisão em casa foi um caso sério. A nossa mãe ficou inconsolável e nós, os mais pequenos, pressentíamos que se avizinhavam tempos ainda mais difíceis, um sentimento quase que de orfandade…
Mas os argumentos eram muito poderosos e seguiu o seu destino.
Sempre que podia regressava e passava grandes temporadas, principalmente no Verão, para ajudar nos trabalhos mais espinhosos e também para ajudar e desfruir do seu principal hobby: a música.
A música não tinha segredos para ele. Tanto executava de forma exímia um solo de trompete como trauteava uma pauta do princípio ao fim sem uma falha de som ou de compasso. Ajudava na aprendizagem dos mais novos, copiava laudas e laudas de peças musicais para os diversos instrumentos, empenhava-se activamente em tudo que se relacionasse com a existência da Banda de Música.
Contudo, a vida foi tão madrasta para ele que nem lhe permitiu conhecer a filha que se encontrava em gestação no ventre materno quando partiu rumo à eternidade.
Quem o conheceu sabe bem que não merecia tão cruel destino …
Por isso, aqui lhe expresso a minha homenagem, a minha gratidão e a minha eterna saudade.

Coimbra, 15 de Junho de 2007

4 comentários:

Anónimo disse...

Mesmo tendo saudades temos que guardar no nosso coração os momentos mais felizes que vivemos com aqueles que jà partiram.
A vida continua para os que cà ficam mesmo se por veses è dificil acreditar que jà não os vemos mais,"talves num outro mundo".
beijinhos para todos!!!

Adriana disse...

Nunva soube muitas coisas do Tio Daniel. Seu nome, uma filha quase da minha idade (Daniela) e pouco mais, como a sua morte prematura. Acho que há quem sofra muito com lembranças. Aquela sensação do que poderia ter sido. Sempre que vejo a sua viúva, minha tia, com aquele negro tão fechado (desde sempre, para mim, assim), não consigo deixar de pensar como seria aquele rosto na juventude. Apesar do seu ar sisudo, imagino uma jovem com um sorriso no rosto. E não consigo deixar de imaginar o que poderia ter sido antes... antes dessas peças que a vida nos prega... antes da morte tocá-la ao lado... o lado esquerdo do coração.
Beijos

Anónimo disse...

Por vezes o desaparessimento de uma ou varias pessoas de quem gostamos e amamos é como se " on nous enfonce un poinhar dans le coeur ".
beijinhos para todos!!!!

Anónimo disse...

Olá, amigo!
Enquanto o Ventor anda por ali a esfregar a coluna, eu ando por aqui a afiar as unhas no teclado! Como já ouvi o Ventor falar duma história do Padrinho, pensei que era a mesma e estive quase a seguir, mas depois, de relance pareceu-me que não e daí deixar aqui um comentário ao post em que tu tão bem exprimes como as saudades nunca podem morrer. Aquele que tu admiraste como um familiar quase completo, porque acho que na vida nada é completo, mesmo para gatos, tenho a certeza que para ti ele foi completo como homem e como uma "peça" daquilo a que chamamos saudade. A saudade é globalizante, mas nessa globalização há pedaços que nunca poderemos esquecer e fazem parte da nossa vida. Mas temos que viver com isso.
Um abraço,