terça-feira, 20 de novembro de 2007

A Bilha



Não era uma bilha qualquer. Era uma bilha única pela qual toda a gente gostava de beber e um instrumento indissociável das jornadas de árduo trabalho do campo sob a inclemência de um sol abrasador. A água que brotava do seu seio arredondado era fresca e cristalina, porque fresca e cristalina era ela ao sair do próprio manancial e a bilha conservava todas essas qualidades acrescentando-lhe um indescritível sabor a barro recosido sabe-se lá em que olaria.
Um dia andavam meus pais e irmãos a sachar milho no Manhuço (raio de nome) e incumbiram-me de ir encher a bilha de água a uma nascente no sítio denominado Uzenda (raio de nome). Todo empertigado e importante, lá me desloquei pé ante pé direitinho à nascente: Desci pelo caminho das Carvalheiras, virei à esquerda por um carreiro estreito até ao Chão do Monte, atravessei a corga que descia a encosta desde o Chão da Aveleira até ao Rio Pequeno ao fundo da Carvalheira e eis-me em frente da pequena mina de onde escorria uma generosa nascente de água do melhor que pode haver. E aqui começam as complicações... Olhei para o buraco, onde teria de me enfiar para aceder à água numa improvisada bica feita de pedras toscas mas recuei cheio de medo. Não que visse ali qualquer fantasma mas... podia estar lá alguma cobra e brrrrrrrr... nãaaa, não meto a cabeça naquele buraco. Recuei, olhei de novo, voltei para trás e fui embora sem uma gota de água. Para cúmulo, pelo estreito carreiro ladeado de ervas quase da minha altura já via cobras por todos os lados e cada vez mais amedrontado acelerei o passo o mais que me permitiam as pequenas pernas. Ao voltar a passar por um valado de onde escorria uma pequena cascata de água que fazia remexer as ervas que a ladeavam e produzir um ténue ruido deu-se o clímax dos medos. Então, desatei a correr com quantas ganas tinha. Ao subir o último troço do caminho, uma calçada tosca de pedras, terra e ervas escorreguei e bem tentei evitar o acidente mas o pior aconteceu: a bilha bateu numa pedra e desfez-se em mil pedaços. Oh que desgraça! Como foi possível aquilo acontecer-me? Que justificação eu ia dar aos meus pais e irmãos que cheios de sede aguardavam que eu lhes levasse o precioso líquido? E que castigo estaria reservado para o sacrilégio de partir a mais preciosa bilha que existia em todo o lugar de Cavenca e arredores?
Automaticamente, recolhi os pedaços de barro que me foi possível apanhar, deixei-os numa borda do campo de milho onde decorria o trabalho e, sem que ninguém me visse nem ao menos dizer "água vai", dei de "frosques" para casa...
Quando meu pai e irmãos regressaram para o almoço, que naquele tempo se chamava jantar, submeteram-me a um intenso e agressivo interrogatório para saber porque não lhes tinha levado a água. Atabalhoadamente defendi-me como pude, argumentando que a cobra tinha soprado e que escorregara... E a bilha, onde está a bilha? A bilha ficou no cimo do campo, no meio de uma ervas... Pois então, diz meu pai, depois de comermos vais comigo mostrar-me onde está.
A tempestade amainou, ganhei tempo e respirei fundo. Depois de ingerirmos o parco almoço deslocámo-nos ao local do "crime". Ao aproximarmo-nos do sítio onde tinha deixado os restos da famosa bilha adiantei-me a meu pai, que andava muito devagar devido a uma avaria no sistema de tracção o qual além das pernas contava com a ajuda de duas bengalas e de longe fui-o informando do sítio onde jaziam os "restos mortais" do estimado objecto.
Pelo sim pelo não fui mantendo uma distância razoável do meu progenitor, não fosse uma das suas auxiliares motrizes assentar-me nas costas...

Imagem: http://www.rt-atb.pt/fotos/C%20-%20Arlindo%20Silva%20-%20bilha%20de%20%C3%A1gua%20c%C3%B3pia.jpg

2 comentários:

Anónimo disse...

O que o medo é capaz de nos fazer...
Em relação á cobras, desde bem pequenas minhã mãe nos ensinou a sempre fazer o Sinal da Cruz antes de entrar por alguma picada no mato. A fé é algo fantástico: sabes que jamais me deparei com elas?
Gostei da tua história, como sempre, aliás.
Beijinhos!

Anónimo disse...

Olá Mano
Qual não foi a minha surpresa hoje ao visitar o seu Blog...
Exatamente hoje, enquanto esperávamos a nossa vez numa sala de espera do médico, contei a história da bilha ao Junior. É claro que, de depois 40 anos, creio eu, não contei com tantos detalhes. Ele vai adorar ler...e, que incrível coincidência!! Quanto a cobras, eu não tenho medo, tenho pavor. Não gosto de vê-las nem em fotografia.
Manhuço (raio de nome) Uzenda (raio de nome) esqueceu...Cudessal ( que raio de nome)...rsrsrsrsrs
É muito bom recordar...
Beijos e beijos.