e dotado de todos os atributos indispensáveis para
evoluir por si mesmo em direcção a um fim superior".
Carlos Bernardo González Pecotche
O valor da vida humana é hoje insignificante e reduzido a um contexto de tal modo diminuto que nos faz meditar acerca dos superiores desígnios reservados a esta nossa condição.
Volto às margens do Tua para recordar uma tragédia que testemunhei há alguns anos.
Era dia de percorrer as aldeias, numa daquelas acções em que se fiscalizava a licença do cão e do gato, o depósito de detritos e despejo de águas sujas na via pública, ao mesmo tempo que se contactava com as pessoas, se ouviam queixas e reclamações, desabafos e confidências, enfim, uma verdadeira acção de proximidade entre a população e aqueles que se encontram por ela mandatados para velarem pela sua segurança e tranquilidade.
A actividade começara cedo, interrompeu-se para um frugal almoço e continuava pela tarde até cerca das dezassete horas..., se as obrigações de serviço o permitissem. Não foi o que sucedeu nesse dia.
Sem muito trabalho, seriam umas quatro horas da tarde, já no percurso de regresso ao Quartel, o emissor-receptor instalado no inconfundível Land Rover quebrou o monótono ruído do motor. Uma rixa em Carlão, com tiros e feridos, reclamava a nossa presença.
Era preciso agir.
Percorridos escassos quilómetros um automóvel de aluguer despertou a nossa atenção com sinais de luzes e gestos do respectivo condutor. Este dirigia-se para o Hospital local transportando um sexagenário de rosto irreconhecível pelo sangue que parecia jorrar de todos os poros e informou-nos de que havia mais um ferido ou morto. Não perdemos tempo. Era preciso socorrer aquele homem e não éramos nós que lhe podíamos valer. Enquanto aquele se dirigiu para o Hospital, nós retomamos a marcha em direcção a Carlão.
Aquela simpática aldeia fora alvo da nossa visita matinal onde detectamos apenas uma situação de que já havia referências e exigia acção policial. Um indivíduo perfeitamente referenciado conduzia diariamente uma viatura de mercadorias sem estar legalmente habilitado e vimos a viatura suspeita a circular em direcção a nós numa rua de sentido único. Paramos para interceptar o condutor mas este apercebeu-se da nossa presença e, habilmente, encostou a viatura e fugiu a pé sem chegarmos a reconhecê-lo e agir em conformidade com a situação.
Agora, a escassos metros do local onde a viatura fora abandonada, o nosso suspeito jazia inerte no asfalto. Era um indivíduo ainda jovem, menos de trinta anos, casado e pai de três filhos de tenra idade. Estava morto.
A informação então recolhida pelo testemunho das pessoas e pelos vestígios que foi possível recolher deu-nos uma ideia do que teria sucedido.
O mesmo indivíduo que de manhã nos escapara por pouco conduzia novamente a sua viatura, pela mesma rua, e apercebeu-se de uma discussão entre um tio e o veterano cidadão que tinha sido transportado para o Hospital. Então terá dito ameaçadoramente que ia pôr fim à discussão e acelerou a fundo dirigindo-se para casa que em linha recta ficava a escassos cem metros mas para lá chegar tinha de dar a volta ao quarteirão e percorrer cerca de um quilómetro. Instantes depois regressou ao local da discussão a pé, numa correria desenfreada e munido de uma espingarda de caça semi-automática, com capacidade para cinco cartuchos. Era um exímio atirador, coleccionador de troféus nos torneios de tiro aos pratos e um caçador nato, tanto na época de caça como no defeso.
Só que do lado oposto encontrava-se um rival à altura, talvez menos impulsivo mas mais experiente. Enquanto o jovem foi buscar a sua arma, o veterano, que se encontrava junto da própria residência, muniu-se da sua velha caçadeira de dois canos paralelos, carregada e pronta para o que desse e viesse.
Os tiros ecoaram em uníssono, sinistramente, pelas ruas da pacata localidade.
Pelo que apuramos foram três os disparos e foi impossível determinar qual dos contendores terá disparado primeiro. Talvez tenha sido o veterano, um tiro com cartucho de chumbo, alto, apenas para intimidar, dado que as marcas se encontravam numa parede por trás do local onde jazia o jovem. Este, com a frieza que lhe era peculiar nos torneios em que participava, disparou certeiro. Uma parte do escaldante chumbo atingiu o rival no antebraço esquerdo e no rosto e outra parte descreveu um semicírculo, acompanhando os contornos da cabeça, num portão de chapa à sua retaguarda.
Talvez tenha sido instintivamente que o veterano disparou o segundo tiro pois o chumbo do adversário deixou-o cego para sempre. Este segundo tiro foi fatal para o jovem. A metralha do cartucho era pesada, própria para caça maior, e um grosso zagalote perfurou o crânio do desditoso indvíduo.
Ironia do destino.
Se naquela manhã tivesse sido detido por condução ilegal talvez ainda hoje fosse o caçador furtivo mais temido de Carlão e eu teria de encontrar outro tema para aqui desenvolver...
4 comentários:
Olá eira-velha,
É isso, o valor da vida humana e a ironia do destino muitas vezes têm desses 'encontros'.
Hoje troxeste-nos um tema, triste, duro... mas bem desenvolvido.
Um abraço.
Grande "estória" meu amigo.
Impregnada de existencialismo! No fundo a vida é assim! Um conjunto de caminhos, de possibilidades que momento a momento, minuto a minuto, inexoravelmente, se nos colocam! Fica sempre uma indizível e perplexa tristeza: -E se eu...?
Tenho a certeza que o Jean Paul Sartre iria gostar de ler esta sua "estória"!
Parabéns meu amigo é sempre um grato prazer frequentar o seu blog.
Caro Eira-Velha
Parabens por mais esta estória, muito ligada a quem vive a Guarda intensamente.
Juntando, pouco a pouco, muitos grãos tem-se um saco de areia.
Reunindo muitas pérolas, consegue-se obter um belo colar.
O trabalho suado é uma boa base para a inspiração.
Abraços do Zé Guita
Muito bom seu blog, bem escrito, limpo,
parabéns
izil
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