quarta-feira, 4 de março de 2009

Novas Oportunidades

Trinta e cinco mil dos 49 mil elementos que compunham o efectivo da GNR e da PSP, em 2006, não possuía qualificações ao nível do ensino secundário. Este número representava cerca de 75% do total dos homens ao serviço nestas duas forças de segurança. No entanto, os elementos com o 12.º ano têm vindo a aumentar naquelas duas forças de segurança: na PSP são já 35% (dos 22 mil elementos que actualmente integram aquela corporação) os agentes com esse grau de escolaridade; e na GNR cerca de 10% (dos 45 mil militares).

Recebi-o com o respeito e apreço que sempre me mereceram os mais velhos, um modo de proceder que noutros tempos fazia parte da criação.
O Cabo João Sousa era já octogenário mas com todas as faculdades intactas. Apesar do seu semblante sisudo, muito comum à generalidade dos que no seu tempo exerceram a espinhosa função de agente da autoridade, era um homem afável, de palavra fácil, detentor de uma vasta experiência de vida. Foi ao Posto entregar um recibo de uma consulta médica para ser reembolsado da comparticipação que lhe era devida pelos serviços de assistência na doença, uma bagatela que não se podia dispensar.
Para o efeito era necessário preencher um documento em quadruplicado, manualmente, que só o trabalho de tentar acertar os espaços em branco na velha "Olivetti" era suficiente para demover os mais ousados.
Prontifiquei-me a preencher os papéis, um a um, mas o Cabo Sousa, de forma educada, recusou. Disse-me que gostava de escrever, só precisava de se sentar um bocadinho numa secretária que do resto tratava ele. Algo envergonhado, não insisti. Disponibilizei-lhe o espaço e forneci-lhe os impressos de modelo obrigatório. Com mão firme e traço impecável, desenhou os caracteres necessários ao preenchimento dos documentos, entregou-mos e, despedindo-se com a mesma afabilidade, foi à sua vida.
Apreciei a dignidade da atitude e a beleza da escrita impressa naqueles papéis pelo punho do ancião, uma caligrafia escorreita, quase desenhada, que me parece ser muito comum naqueles tempos pelo que se pode observar em inúmeros documentos da época.
O Cabo Sousa não tinha, seguramente, outras habilitações que não fosse o ensino básico obrigatório o qual se deveria cingir à terceira ou quarta classe, muitas vezes obtidas nas aulas regimentais, uma função social importante que as instituições militares cumpriam de forma notável. Porém, os seus conhecimentos eram, de certeza, de nível muito superior. Só que não havia certificação de competências e… o saber acumulado assim permaneceu sem reconhecimento ao longo da sua vida profissional e pessoal.
A vida é mesmo assim. Um aprendizado permanente impulsionado pela necessidade de saber mais, pela prática de inúmeros erros que importa corrigir, pela vontade de desenvolver competências para ascender hierarquicamente, pela simples curiosidade, realização e satisfação pessoal que daí advém.
Conheço muitos outros trabalhadores que, com muitos sacrifícios de toda a ordem, obtiveram habilitações de nível superior, conjugando a actividade profissional com o estudo. Eu próprio passei por essa experiência e mais de uma vez tive de abandonar as salas de aulas para acorrer às minhas obrigações de serviço. De entre todas destaco duas, uma para dirigir as acções a desenvolver num caso de homicídio, outra para transportar uma mulher para o Hospital onde, pouco tempo depois de ali ter entrado, deu à luz uma linda menina, minha filha.
No meu caso pessoal, esses sacrifícios permitiram-me atingir as metas estabelecidas. Muitos outros com qualificações de nível superior continuam a ser Soldados (ainda não me habituei a usar a nova designação de Guardas), Cabos ou Sargentos. Certamente que os serviços onde desenvolvem as suas profissões beneficiam muito das competências adquiridas pelos funcionários. Do ponto de vista institucional é gratificante poder proclamar que o nível de escolaridade melhorou substancialmente mas do ponto de vista pessoal resulta muita frustração. É que não basta reconhecer as habilitações. É preciso também reconhecer o esforço e a excelência do serviço prestado com algo mais do que um mero diploma.
Afinal, para que serve o reconhecimento, certificação e validação de competências cujas virtualidades são proclamadas aos quatro ventos?
Eu atrever-me-ia a dizer que serve apenas interesses difusos no submundo do oportunismo político e económico mas não quero que me acusem de má-língua.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Eira Velha
É com muita satisfação que vejo o início de publicação das suas estórias na Revista da Guarda.
Permita-me destacar a importância da divulgação das mesmas para refrescamento das gerações menos novas e esclarecimento dos mais jóvens.
A memória da Guarda precisa imenso delas e o seu contributo é urgente, sendo desejável a breve publicação das mesma agrupadas em livro.
Insista e acelere!
Um grande abraço do
Zé Guita

redonda disse...

Muito bem escrito.

E porque li também o que está em cima, como é que poderia arranjar uma das revistas?

Anónimo disse...

Para redonda

Revista da GNR
Telefone 218814969