quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Caminhos e Descaminhos

Em linha recta, Cavenca distará uns escassos cinco quilómetros da Baldossa, o último lugar ao cimo da Gave, já no limite com Parada do Monte. Contudo, o serpentear dos caminhos que era necessário percorrer para alcançar este lugar, faziam com que o percurso se alargasse para uns nove ou dez quilómetros.
Era preciso subir e descer encostas, atravessar riachos e córregos escuros, transpor recantos tenebrosos por meio do espesso arvoredo de carvalhos, castanheiros, pinheiros e outra vegetação arbórea, descrever as curvas de nível em estreitos e pedregosos carreiros desenhados ao longo do tempo por inúmeros passantes, tudo por um terreno ermo e desolado.
Pois foi esse o percurso que me propuseram fazer certa madrugada, em que minha madrinha Judite e minha irmã Anastasia decidiram ir à Espanha fazer compras, que era mais barato.
Na Baldossa juntavam-se a outras companheiras e, todas juntas, rumavam até Lamas do Mouro, passavam a raia seca em Rodeiro por caminhos de contrabandistas, faziam as compras e regressavam carregadas com a preciosa mercadoria, que não era mais do que bens essenciais para a sobrevivência das pessoas mas que se considerava um grave atentado à economia nacional. Isto se a Guarda Fiscal não aparecesse e lhes arrestasse tudo...
Após uma rápida soneca, acordei estremunhado com umas vigorosas pancadas na porta do pardieiro onde dormia e, resignado, vesti-me, tomei um cajado e uma lanterna cujo combustível era o azeite e, juntamente com as “contrabandistas”, pusemo-nos a caminho.
Em grupo a caminhada não era difícil e ao fim de pouco mais de duas horas estávamos na Baldossa, onde o resto do grupo esperava.
Como já não era mais preciso, despedi-me e iniciei a viagem de regresso. Só nessa altura me apercebi que eram três horas e meia da madrugada, uma hora boa para estar a dormir descansado.
Então, um calafrio de medo percorreu o meu corpo e comecei a pensar se seria avisado percorrer sozinho aquele itinerário, povoado sabe-se lá de que feras ou de coisas do outro mundo!...
Mas não tinha alternativa. A minha mente esforçava-se por apenas desenhar o estreito carreiro que me traria de volta ao lar mas não conseguia alhear-me da pavorosa escuridão que me rodeava, apenas vencida num raio de escassos centímetros pelo frouxo luzeiro da lanterna que pendia da mão crispada sobre a pega.
Decididamente meti-me a caminho.
O latido dos cães, misturado com alguns uivos lancinantes, fazia ainda mais tenebrosa a tenebrosa noite. Depressa deixei de ouvir qualquer sinal de vida para só ouvir o ressoar dos meus próprios passos.
Sempre perscrutando todos os recantos e ouvido atento a tudo que pudesse quebrar o silêncio da noite, caminhei o mais rápido que me era possível, na ânsia de acabar com o temor que me afligia e revolvia as entranhas mas parecia que a distância era agora maior. E tinha de passar por recantos medonhos: atravessar Fontaradeira, descer o monte da Gave, transpor a corga do Beche, o Couto do Moinho e finalmente o Pedregal. Tudo eram etapas que se iam sucedendo mentalmente umas às outras mas que demoravam uma eternidade a concretizar-se.
E quando algum pássaro batia as asas estremunhado ou algum pequeno animal nocturno fugia espavorido pelo restolho, mais eu tentava estugar o passo amedrontado.
Já o dia luzia quando cheguei ao lugar de origem.
O cheiro do fumo matinal que se espalhava pelo ar vindo das lareiras que começavam a acender-se nalgumas casas, o latido dos cães que eu já conhecia e o barulho dos tachos que se ouvia na rua trouxeram-me uma paz de espírito e uma tranquilidade indescritíveis.
Voltei para a cama e jurei que nunca mais sairia de casa sem ver que horas eram...
Coimbra, 18 de Fevereiro de 2002

1 comentário:

Professor disse...

O mais espantoso dessas caminhadas solitárias, pela noite, nas florestas, são as formas que nós inventamos para alimentar os nossos medos e esconjurá-los simultaneamente.
Um tronco caído, um ramo, uma folha tomam formas fantásticas a que a nossa imaginação logo junta o surreal e o sobrenatural. São animais monstruosos e aterradores, seres disformes que se agitam e brilham como se estivessem vivos, que a nossa coragem destroi quando nos aproximamos e os tocamos.
Foram também experiências da minha juventude... hoje quero é sopas e descanso!
Saudações bloguistas.