quinta-feira, 26 de outubro de 2006

A Queda de um Anjolas*

O rubicundo frade arfava como uma velha locomotiva e o calor da sua predicatória embevecia a plateia. Pela comissura dos lábios brotava-lhe um fio de espuma e umas gotas de suor tremeluzente criavam uma aura de santidade na sua enorme coroa.
Era uma semana de intensa evangelização, com cânticos, missas, rezas, comunhões e outros ofícios divinos, que congregava toda a comunidade paroquial, imbuída de fé e ávida da Palavra transmitida de forma arrojada e sábia pela boca daquele frade pertencente a uma congregação sedeada em Barroselas – os missionários passionistas.
Todas as madrugadas, ainda o Sol não dava sinais de vida, velhos e novos, homens e mulheres, abandonavam a quietação do cálido almadraque e rumavam até à Igreja Matriz para assistir e participar em mais um acto de devoção, abrilhantado pelo discurso vigoroso e enfático do anafado frade.
Naquele dia, o pequeno “rebanho” descia o Monte do Santo, pelo caminho florestal, circundado de espessos pinheiros que mais enegreciam a escura noite, cantando e rezando, numa clara demonstração de fé e de obediência ao seu pastor, sem necessitar de outra luz que não fosse a que lhe despontava da alma pura e cândida.
Então, algo estranho aconteceu que gerou uma enorme confusão no compacto grupo, fazendo vacilar os cânticos estridentes e pouco harmoniosos que as gargantas ainda ensonadas conseguiam produzir. No meio da desorientação geral, com gritos e pragas à mistura, várias pessoas rebolaram pelo chão e eu, sem saber donde vinha o castigo, fui contemplado com um enorme choque na testa que me fez perder o rumo e ver uma constelação inteira de estrelas, apesar de saber que nenhum luzeiro se vislumbrava através do tecto nebuloso e negro que cobria o firmamento.
Ainda pensei que era castigo divino por qualquer quebranto da minha devoção mas, quando me recompus da brutal bordoada enxerguei o vulto colossal e agigantado de um qualquer quadrúpede, mais desmedido ainda pela enorme carga que transportava em cima da albarda que lhe cobria o dorso, imóvel no meio do caminho.
Era uma das mulas do Zé da Arrieira que, àquela matinal hora lá ia carregada de graníticos esteios para as vinhas de um qualquer cliente de Lijó ou da Gave, sem outro farol que não fosse o seu instinto bestial e contra o topo de um dos quais eu tinha enfiado a minha frágil frontaria, agora enfeitada com um enorme “galo”.
Coimbra, 18 de Outubro 2001


Foto: Igreja paroquial de Riba de Mouro
* Era para ser Anjo mas para evitar plágios...

1 comentário:

TheOldMan disse...

Até em áreas pouco povoadas um tipo se arrisca a char com uma mula a qualquer esquina...

Abraço

;-)