sábado, 8 de março de 2008

Quem Manda?

O Ministério da Administração Interna divulgou hoje, véspera do protesto dos professores em Lisboa, um conjunto de "normas técnicas" para regulamentar a actuação das forças de segurança durante manifestações públicas.
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1321961&idCanal=12

O texto integral do documento pode ser consultado aqui.
Trata-se de um documento que define um modelo de actuação das forças policiais face ao quadro legal que legitima o direito de reunião e de manifestação em Portugal e vem na sequência da forma como alguns agentes das polícias procuraram recolher informações acerca da manifestação de professores prevista para hoje, designadamente sobre o número de viaturas de transporte de passageiros envolvidas na operação de mobilização para a concentração a realizar na Capital.
O assunto não seria tema de abordagem neste espaço se não me parecesse algo inédito. Acho mesmo que é a primeira vez que um Ministro da Administração Interna impõe, assim, a organismos que dele dependem, uma modalidade de actuação face a determinada situação, nomeadamente à realização de manifestações públicas.
A experiência diz-me que muitas vezes, no interior das Instituições, é necessário criar normas que regulamentem o seu funcionamento ou estabeleçam modelos de actuação uniformes, sempre subordinadas ao quadro legal vigente. São as designadas NEP (Normas de Execução Permanente) ou, simplesmente, Notas-Circulares, ou ainda, de forma mais genérica, somente Ordens.
A produção destas Normas Técnicas deverá, a meu ver, se necessárias, competir aos titulares dos cargos de direcção das forças de segurança e não ao Ministro.

De facto, o Ministro da Administração Interna encontra-se no topo de uma cadeia hierárquica bem definida, com as suas competências e responsabilidades e o seu Ministério tutela as forças de segurança na sua dependência, tendo por missão e atribuições:
Decreto-Lei n.o 203/2006 de 27 de Outubro (Lei Orgânica do MAI)
Artigo 1.º
Missão
O Ministério da Administração Interna, abreviadamente designado por MAI, é o departamento governamental que tem por missão a formulação, coordenação, execução e avaliação das políticas de segurança interna, de administração eleitoral, de protecção e socorro e de segurança rodoviária, bem como assegurar a representação desconcentrada do Governo no território nacional.
Artigo 2.º
Atribuições
Na prossecução da sua missão, são atribuições do MAI:
a) Manter a ordem e tranquilidade públicas;
b) Assegurar a protecção da liberdade e da segurança das pessoas e seus bens;
c) Prevenir e a reprimir a criminalidade;
...

Na concretização da missão e atribuições do MAI surgem as forças de segurança (a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana) cuja actuação tem limites legais perfeitamente definidos, dos quais se destacam os seguintes:
Constituição da República Portuguesa de 2005
Artigo 272.º
(Polícia)
1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3. A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
Lei n.º 20/87, de 12 de Junho (Lei de Segurança Interna)
Artigo 16.º
Medidas de polícia
1 - No desenvolvimento da actividade de segurança interna, as autoridades de polícia referidas no artigo 15.º podem, de harmonia com as respectivas competências específicas organicamente definidas, determinar a aplicação de medidas de polícia.
2 - Os estatutos e diplomas orgânicos das forças e serviços de segurança tipificam as medidas de polícia aplicáveis nos termos e condições previstos na Constituição e na lei, designadamente:
a) Vigilância policial de pessoas, edifícios e estabelecimentos por período de tempo determinado;
b) Exigência de identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público ou sujeito a vigilância policial;
c) Apreensão temporária de armas, munições e explosivos;
d) Impedimento da entrada em Portugal de estrangeiros indesejáveis ou indocumentados;
e) Accionamento da expulsão de estrangeiros do território nacional.
3 - Consideram-se medidas especiais de polícia, a aplicar nos termos da lei:
a) Encerramento temporário de paióis, depósitos ou fábricas de armamento ou explosivos e respectivos componentes;
b) Revogação ou suspensão de autorizações aos titulares dos estabelecimentos referidos na alínea anterior;
c) Encerramento temporário de estabelecimentos destinados à venda de armas ou explosivos;
d) Cessação da actividade de empresas, grupos, organizações ou associações que se dediquem a acções de criminalidade altamente organizada, designadamente de sabotagem, espionagem ou terrorismo ou à preparação, treino ou recrutamento de pessoas para aqueles fins.
4 - As medidas previstas no número anterior são, sob pena de nulidade, imediatamente comunicadas ao tribunal competente e apreciadas pelo juiz em ordem a sua validação.

Por seu turno, as forças de segurança e os titulares dos cargos que as dirigem também se encontram, organicamente, delimitados nas suas atribuições e competências.
No caso concreto da GNR, que não difere substancialmente da PSP, dispõe a lei:
Lei n.º 63/2007, de 06 de Novembro (Lei Orgânica da GNR)
Artigo 3.º
Atribuições
1 - Constituem atribuições da Guarda:
a) Garantir as condições de segurança que permitam o exercício dos direitos e liberdades e o respeito pelas garantias dos cidadãos, bem como o pleno funcionamento das instituições democráticas, no respeito pela legalidade e pelos princípios do Estado de direito;
Artigo 23.º
Comandante-geral
1 - O comandante-geral é um tenente-general nomeado por despacho conjunto do Primeiro-Ministro, do ministro da tutela e do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional, ouvido o Conselho de Chefes de Estado-Maior se a nomeação recair em oficial general das Forças Armadas.
2 - O comandante-geral é o responsável pelo cumprimento das missões gerais da Guarda, bem como de outras que lhe sejam cometidas por lei.
3 - Além das competências próprias dos cargos de direcção superior de 1.º grau, compete ao comandante-geral:
a) Exercer o comando completo sobre todas as forças e elementos da Guarda;
b) Representar a Guarda;
...
g) Decidir e mandar executar toda a actividade respeitante à organização, meios e dispositivos, operações, instrução, serviços técnicos, financeiros, logísticos e administrativos da Guarda;
...
q) Exercer as demais competências que lhe sejam delegadas ou cometidas por lei.
Lei n.º 2/2004 de 15 de Janeiro
Artigo 7.º - Competências dos titulares dos cargos de direcção superior
1 - Compete aos titulares dos cargos de direcção superior de 1.º grau, no âmbito da gestão geral do respectivo serviço ou organismo:
a) Elaborar os planos anuais e plurianuais de actividades, com identificação dos objectivos a atingir pelos serviços, os quais devem contemplar medidas de desburocratização, qualidade e inovação;
...
d) Praticar todos os actos necessários ao normal funcionamento dos serviços e organismos, no âmbito da gestão dos recursos humanos, financeiros, materiais e patrimoniais, tendo em conta os limites previstos nos respectivos regimes legais, desde que tal competência não se encontre expressamente cometida a outra entidade e sem prejuízo dos poderes de direcção do membro do Governo respectivo;
e) Propor ao membro do Governo competente a prática dos actos de gestão do serviço ou organismo para os quais não tenha competência própria ou delegada, assim como as medidas que considere mais aconselháveis para se atingirem os objectivos e metas consagrados na lei e no Programa do Governo;
f) Organizar a estrutura interna do serviço ou organismo, designadamente através da criação, modificação ou extinção de unidades orgânicas flexíveis, e definir as regras necessárias ao seu funcionamento, articulação e, quando existam, formas de partilha de funções comuns;
...
h) Proceder à difusão interna das missões e objectivos do serviço, das competências das unidades orgânicas e das formas de articulação entre elas, desenvolvendo formas de coordenação e comunicação entre as unidades orgânicas e respectivos funcionários;
...
j) Elaborar planos de acção que visem o aperfeiçoamento e a qualidade dos serviços, nomeadamente através de cartas de qualidade, definindo metodologias de melhores práticas de gestão e de sistemas de garantia de conformidade face aos objectivos exigidos;
l) Propor a adequação de disposições legais ou regulamentares desactualizadas e a racionalização e simplificação de procedimentos;
...

Perante este cenário atrevo-me a formular duas questões:
Não estará o MAI a imiscuir-se nas competências e responsabilidades dos titulares dos cargos dirigentes das forças de segurança?
Não bastaria transmitir aos mesmos titulares que mandassem os seus subordinados observar escrupulosamente, como lhes compete, as disposições legais que estabelecem os limites da acção das polícias?

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Boaventura
Como sempre, bastante esclarecedor o teu texto. Nesta questão da informação recolhida pela polícia junto de algumas escolas, há, contudo, um ponto que me levanta alguma preplexidade. Compreendendo que,para fins de preparação operacional, seja importante ter um quadro do número previsível dos participantes numa manifestação. No entanto, qual o sentido da tentativa de recolha de informação relativa à percentagem dos docentes da escola que participariam na referida manifestação? ( Segundo um dos telejornais de sexta-feira, esta seria uma informação a colher).
Saudações ribamourenses
A. Romano

Anónimo disse...

Camarada Eira-Velha
A sua análise parece-me correcta e feita á luz da legislação vigente. Mas uma coisa é a doutrina e outra a prática dos políticos. Estes sabem de tudo e em tudo se entrometem mesmo quando o mais elementar bom senso aconselharia a que ficassem calados. Na área militar e policial tal como acontece no foot-ball também há treinadores de bancada.E estes politicos actuais acham-se com capacidade para tudo. Depois os resultados é o que se vê. Mas isto para mim seria o menos. O que me confrange é se porventura houver algum cmdt militar digno deste nome que lhes dê ouvidos. Espero que os cmdt dos vários escalões de cmd decidam de acordo com as normas e regulamentos que constam das leis e que nenhuma " norma técnica" emanada de um qualquer burocrata pode revogar. Por isso é que a Guarda é uma força militar ainda que isto desagrade a muitos ( o problema é deles)."Chefes" destes topamo-los á distância. Que saudades Gen ESMERIZ.Zé Tavares