quinta-feira, 27 de março de 2008

Reviver

Revivi, nesta Páscoa, por instantes, o sentimento de festa marcadamente cristã mas que servia, noutros tempos, para muitos outros fins que não apenas a "lavagem" dos pecados acumulados ao longo de todo o ano.
Na minha terra, para se receber a visita pascal convenientemente, removiam-se os móveis e retirava-se todo o lixo acumulado por detrás e por baixo,com água e sabão amarelo esfregava-se o soalho, muitas vezes desgastado, esburacado e carcomido pelo tempo e pelo bicho da madeira que nele se instalava e rilhava incessantemente até se desfazer em pó, principalmente quando era de má qualidade, que se fosse de castanheiro ou de carvalho tornava-se mais resistente que o aço, varriam-se pátios e caminhos de acesso às humildes habitações, por fim enfeitava-se tudo com um ror de pétalas de camélias e "páscoas", uma lindas flores amarelinhas que cresciam a esmo pelos prados mais húmidos do Baloucal, da Cancelinha, dos Vicentes, do Outeiro...
As portas das casas abriam-se de par em par e a família esperava na sala, principal divisão da habitação e a única que era exposta. Em cima da mesa, coberta com uma toalha de alvo linho retirada do fundo do baú onde se guardava o bragal mais fino, um prato com doces, em que ninguém tocava, excepto se o anfitrião convidasse para um apressado beberete, o que apenas sucedia nas casas de maiores recursos.
O Padre recitava as suas ladainhas do costume, em latim, como mandava a liturgia, e de seguida era dado a beijar o crucifixo adornado a preceito para aquela época. No final cumprimentava o dono da casa, de cuja mão sacava discretamente o donativo que este previamente tinha preparado para a ocasião e enfiava-o na algibeira sem contar, pelo menos no acto, que depois iria fazer contas e tentar adivinhar quem seria o sovina que o presenteara com tão magra prestação.
Os Padrinhos, alguns, presenteavam os afilhados com um pão de trigo. Confesso que nunca percebi bem aquele costume mas... naquela terra havia coisas que não tinham explicação, por isso está tudo explicado...
Depois era o melhor da festa, que era encher o estômago com um delicioso cozido, quantas vezes apenas umas batatas e couves cozidas com um pedaço de toucinho ou chouriça. E quando calhava também se fazia um bucho doce cuja receita ainda hei-de tentar recolher e registar para a posteridade.
Mas os tempos mudam e actualmente a visita pascal resume-se a um arremedo do que era apenas para manter a tradição. Mesmo assim, honra seja feita a quem se esforça por manter viva a memória desse passado que tantas coisas me evoca.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Boaventura
Aí vai um contributo no que à receita do "Bucho" diz respeito:
- Pão do dia anterior desfeito em pedaços muito pequenos (reservar).
- Dependendo do tamanho de bucho que se pretenda fazer, bater os ovos, pelo menos uma dúzia, juntamente com uma colher de sopa de açucar por cada ovo, um pouco de canela e um nico de raspa de limão. Depois de batidos, juntar o pão aos ovos, de modo a conseguir uma massa com uma consistência mole e homogénea (evitar que permaneçam pedaços de pão seco). De seguida, meter a massa num saco de plástico e atar, deixando uma pequena folga. Esse saco será metido num outro de tecido, o qual deverá ser atado e introduzido numa panela grande de água. A cozedura durará cerca de uma hora e meia para um bucho de uma dúzia de ovos. Se forem mais é fazer o respectivo acerto...
Saudações ribamourenses
A. Romano

Eira-Velha disse...

Obrigado, António.
Eu sabia, mais ou menos, tendo em conta que assisti muitas vezes a fazer esse pitéu em casa dos meus pais, ainda no tempo que não havia plástico, era cozido num saco de estopa apenas. Curiosamente, há alguns anos, numa feira de artesanato ou gastronómica em Monção, estava uma senhora dos lados de Melgaço com ele exposto numa banquinha e pronto para ser degustado e perguntei-lhe, um pouco maldosamente, como se chamava, tendo-me respondido, algo envergonhada que era "bucho doce". Em Cavenca era simplesmente "bucho".
De qualquer modo deixo já o alerta aos curiosos, não é nada em que valha a pena apostar. Mas à falta de melhor...
Um abraço.