quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

História de Vida - Ou como contrariar o destino

Exteriormente era uma casa modesta, igual a muitas outras da pequena mas aprazível e simpática aldeia duriense. Contudo, mal assomei ao pequeno pátio situado à entrada já divisava a miséria que grassava no interior daquelas quatro paredes que serviam de lar a uma extensa e pobre família: uma montureira com inúmeros dejectos em decomposição a fervilhar de insectos, escorrências pestilentas de águas residuais e lama...
Dentro da única divisão da casa, escura, suja e sem o mínimo de condições de habitabilidade, um pequeno catre servia de berço a um ser humano, uma menina com cerca de um ano, que nele se encontrava nas condições mais miseráveis que se possa imaginar: em posição fetal, doente, desnutrida e salpicada de excrementos já ressequidos, embrulhada nuns míseros farrapos também com excrementos humanos agarrados e encrostados e com um desenvolvimento físico correspondente a uns escassos três meses.
Não tinha registo, nem baptismo, nem vacinas... nada, não era ninguém!
Foram uns vizinhos que souberam da situação em que a criança se encontrava e teriam tentado, em vão, convencer a mãe a levá-la ao Hospital concelhio, porque o pai, um pastor rude e bruto, não deixava que lhe tocassem e perante isso ninguém ousava desafiar a autoridade paterna. Toda a gente tinha medo dele, já tinha resolvido uma querela à navalhada e, por isso, o mais avisado seria chamar a Guarda.
Naquele tempo a Guarda resolvia (quase) tudo, era uma autêntica polícia de proximidade, conhecia as pessoas e as pessoas reconheciam-na. Ainda retenho o ar de espanto e de incredulidade estampado nos rostos de muitas pessoas, principalmente as mais idosas, quando precisei de lhes explicar que os seus problemas tinham de ser apresentados e dirimidos nos tribunais, certamente a pensar lá para dentro que "eram modernices de uma geração de incompetentes".
Foi nesse clima de confiança e de ausência de estruturas de apoio para casos daquela natureza que os vizinhos da menina foram ao Posto da Guarda apresentar o caso, esperando certamente a resposta que ansiavam: a Guarda vai resolver.
E resolveu...
Eu próprio me incumbi de ir ao local e comigo foi o Saraiva, um Guarda da "velha guarda" em quem sempre confiei e que nunca defraudou essa confiança. Era um excelente profissional e um Homem afável, conversador. Conhecia a área como as palmas da mão, conhecia as pessoas e a índole das populações e mais do que isso, tinha um coração do tamanho do Mundo mas que pouco tempo após a obtenção da merecida reforma o atraiçoou e decidiu deixar de bater naquele peito imenso.
Quando constatamos o quadro acima descrito não foi preciso perder tempo com mais conversas. Com o pai ausente no monte, com as suas ovelhas e cabras, para ele certamente mais importantes do que a filha e a mãe, uma mulher boçal, estúpida e porca, reticente e com medo da reacção do bruto do marido, decidimos transportar a menina no jeep para o Centro de Saúde, fossem quais fossem as reacções. Ao ver que nada podia fazer perante a nossa determinação, a mãe e a avó de menina resolveram acompanhar-nos e o velho Land Rover da Guarda também serviu para transportar aquelas mulheres e a desditosa criança até ao Hospital onde ficou internada ao cuidado das Irmãs e do corpo clínico que lhe ministraram os cuidados necessários para iniciar a recuperação que se impunha.
Alguns meses depois o Saraiva e uma das Irmãs apadrinharam o baptizado da menina. Mais tarde foi transferida para uma instituição em Braga e não voltou à casa paterna, pelo menos nos primeiros anos de vida. Será hoje uma mulher com vinte e poucos anos de idade que nada recordará do que se passou na sua idade da inocência e ainda bem.
Importa esclarecer que naquele tempo não existiam comissões de protecção de menores, nem casas abrigo, nem apavs, nem... nem...

4 comentários:

Anónimo disse...

Emocionei-me com o relato. É sempre difícil aceitar que possa haver pais e mães desta maneira, não é? Mas também sei muito bem que diante da violência de um, há "outro" que simplesmente se acomoda e lava as mãos.Imagino que no teu trabalho, tenhas visto muitas coisas assim e tantas outras absurdas aos nossos olhos.
Um abraço!

Ana Ramon disse...

Olá amigo. Uma história com um final feliz, embora pense que um atraso desses, como contas, de parecer ter somente 3 meses, teria por certo um desenvolvimento com muitos problemas. Mas o que importa é que a menina se tornou mulher e de certeza com uma infância mais feliz do que se continuasse junto aos pais onde provavelmente não conseguiria sobreviver. Um relato muito bonito :))
Um beijinho

Anónimo disse...

Caro Eira-Velha

Mais uma bela "fotografia" para o filme da Guarda. Certamente dispõe de outras mais no seu baú. Sejam boas ou más, não prive delas os vindouros e junte-as naquilo que virá a constituir um animado e valioso álbum.

Abraço do Zé Guita

nandokas disse...

Olá eira-velha,
Também me emocionei com esta história de vida.
E, por isso, obrigado.
Abraço.