Exteriormente era uma casa modesta, igual a muitas outras da pequena mas aprazível e simpática aldeia duriense. Contudo, mal assomei ao pequeno pátio situado à entrada já divisava a miséria que grassava no interior daquelas quatro paredes que serviam de lar a uma extensa e pobre família: uma montureira com inúmeros dejectos em decomposição a fervilhar de insectos, escorrências pestilentas de águas residuais e lama...
Dentro da única divisão da casa, escura, suja e sem o mínimo de condições de habitabilidade, um pequeno catre servia de berço a um ser humano, uma menina com cerca de um ano, que nele se encontrava nas condições mais miseráveis que se possa imaginar: em posição fetal, doente, desnutrida e salpicada de excrementos já ressequidos, embrulhada nuns míseros farrapos também com excrementos humanos agarrados e encrostados e com um desenvolvimento físico correspondente a uns escassos três meses.
Não tinha registo, nem baptismo, nem vacinas... nada, não era ninguém!
Foram uns vizinhos que souberam da situação em que a criança se encontrava e teriam tentado, em vão, convencer a mãe a levá-la ao Hospital concelhio, porque o pai, um pastor rude e bruto, não deixava que lhe tocassem e perante isso ninguém ousava desafiar a autoridade paterna. Toda a gente tinha medo dele, já tinha resolvido uma querela à navalhada e, por isso, o mais avisado seria chamar a Guarda.
Naquele tempo a Guarda resolvia (quase) tudo, era uma autêntica polícia de proximidade, conhecia as pessoas e as pessoas reconheciam-na. Ainda retenho o ar de espanto e de incredulidade estampado nos rostos de muitas pessoas, principalmente as mais idosas, quando precisei de lhes explicar que os seus problemas tinham de ser apresentados e dirimidos nos tribunais, certamente a pensar lá para dentro que "eram modernices de uma geração de incompetentes".
Foi nesse clima de confiança e de ausência de estruturas de apoio para casos daquela natureza que os vizinhos da menina foram ao Posto da Guarda apresentar o caso, esperando certamente a resposta que ansiavam: a Guarda vai resolver.
E resolveu...
Eu próprio me incumbi de ir ao local e comigo foi o Saraiva, um Guarda da "velha guarda" em quem sempre confiei e que nunca defraudou essa confiança. Era um excelente profissional e um Homem afável, conversador. Conhecia a área como as palmas da mão, conhecia as pessoas e a índole das populações e mais do que isso, tinha um coração do tamanho do Mundo mas que pouco tempo após a obtenção da merecida reforma o atraiçoou e decidiu deixar de bater naquele peito imenso.
Quando constatamos o quadro acima descrito não foi preciso perder tempo com mais conversas. Com o pai ausente no monte, com as suas ovelhas e cabras, para ele certamente mais importantes do que a filha e a mãe, uma mulher boçal, estúpida e porca, reticente e com medo da reacção do bruto do marido, decidimos transportar a menina no jeep para o Centro de Saúde, fossem quais fossem as reacções. Ao ver que nada podia fazer perante a nossa determinação, a mãe e a avó de menina resolveram acompanhar-nos e o velho Land Rover da Guarda também serviu para transportar aquelas mulheres e a desditosa criança até ao Hospital onde ficou internada ao cuidado das Irmãs e do corpo clínico que lhe ministraram os cuidados necessários para iniciar a recuperação que se impunha.
Alguns meses depois o Saraiva e uma das Irmãs apadrinharam o baptizado da menina. Mais tarde foi transferida para uma instituição em Braga e não voltou à casa paterna, pelo menos nos primeiros anos de vida. Será hoje uma mulher com vinte e poucos anos de idade que nada recordará do que se passou na sua idade da inocência e ainda bem.
Importa esclarecer que naquele tempo não existiam comissões de protecção de menores, nem casas abrigo, nem apavs, nem... nem...
4 comentários:
Emocionei-me com o relato. É sempre difícil aceitar que possa haver pais e mães desta maneira, não é? Mas também sei muito bem que diante da violência de um, há "outro" que simplesmente se acomoda e lava as mãos.Imagino que no teu trabalho, tenhas visto muitas coisas assim e tantas outras absurdas aos nossos olhos.
Um abraço!
Olá amigo. Uma história com um final feliz, embora pense que um atraso desses, como contas, de parecer ter somente 3 meses, teria por certo um desenvolvimento com muitos problemas. Mas o que importa é que a menina se tornou mulher e de certeza com uma infância mais feliz do que se continuasse junto aos pais onde provavelmente não conseguiria sobreviver. Um relato muito bonito :))
Um beijinho
Caro Eira-Velha
Mais uma bela "fotografia" para o filme da Guarda. Certamente dispõe de outras mais no seu baú. Sejam boas ou más, não prive delas os vindouros e junte-as naquilo que virá a constituir um animado e valioso álbum.
Abraço do Zé Guita
Olá eira-velha,
Também me emocionei com esta história de vida.
E, por isso, obrigado.
Abraço.
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