Um dia é da caça, outro é do caçador. Que o diga um senhor com quem me cruzei casualmente há cerca de vinte e oito anos, que nunca mais vi e que é a personagem principal desta história verdadeira.
A caça é um desporto, dizem os aficionados, mas na verdade trata-se apenas de um jogo em que os participantes concorrem de uma forma muito desigual. De um lado os caçadores, artilhados a rigor e fazendo uso dos mais sofisticados instrumentos, do outro os indefesos animais que bem podem fugir mas de pouco lhes vale.
Habitualmente a caça tem a sua abertura a 15 de Agosto, sendo permitida a captura de rolas, aves columbinas de migração, abundantes em Portugal de Abril a Setembro, após o que emigram para a África.
Foi precisamente no dia 15 de Agosto, decorria o ano de 1980. Era um dia de pouco movimento na secular Vila de Valença do Minho, pelo facto de ser feriado e o comércio local encontrar-se encerrado. E naquele tempo, sem esse atractivo, bem se podiam fechar as portas da Fortaleza que muito poucas pessoas se incomodariam com isso.
A zona exterior à antiga Vila amuralhada era muito diferente do que é actualmente: A estação dos Caminhos de Ferro, duas pensões, o Mercado Municipal, a fábrica de chocolates "Valenciana" e uma outra relacionada com manufactura de borracha, a residencial Mané e algum comércio ao longo da Estrada Nacional, mais acima o Quartel da GNR e o resto era "paisagem", isto é, campos de cultivo.
No Quartel da GNR, um edifício na altura ainda recente e com boas condições, coexistiam os comandos do Posto local e da Secção de Valença, esta com uma zona de acção que abrangia, além do concelho sede, os de Vila Nova de Cerveira, Monção e Melgaço.
Era ali que eu me encontrava, jovem Cabo, a realizar o estágio do Curso de Formação de Sargentos, empenhado em compilar elementos para a elaboração do relatório final que ocorreria em Setembro. Juntamente comigo apenas se encontrava o pessoal de serviço diário que era o plantão, o apoio ao plantão e um outro responsável pelas comunicações. Foi este que pelas três horas da tarde me informou de que alguém telefonara a denunciar a prática de caça por um grupo de caçadores numa zona proibida, o que face à legislação vigente constituía crime.
Era preciso agir e eu próprio, acompanhado pelo Soldado de apoio ao plantão e o telefonista, munidos das respectivas armas, dois de pistola e bastão e o terceiro com uma G3, que quando se trata de caçadores nunca se sabe, deslocamo-nos para o local a toda a velocidade que permitia o velho carocha preto, exclusivo do Comandante da Secção mas que também servia para "desenrascar" outros serviços.
Estacionamos o carro junto ao apeadeiro de Friestas e embrenhamo-nos na floresta à procura dos prevaricadores dos quais não se via rasto. Percorremos um caminho ao longo da linha de caminho de ferro em direcção a Lapela e volvidos escassos trezentos metros ouvimos um disparo de caçadeira proveniente de um cabeço à nossa esquerda. Apuramos os sentidos e tentamos descortinar o autor do disparo mas em vão. Mais uns metros percorridos e um velho velocípede com motor denunciava o infractor mas do seu proprietário nada. Circundamos o cabeço, ouvimos mais um disparo mas a densidade da vegetação e a configuração do terreno nunca nos permitiu avistar o caçador que, certamente, também não se apercebeu de que os papéis estavam quase a inverter-se e de caçador passava a ser ele a presa...
Voltamos ao local onde se encontrava o velocípede e dispusemo-nos a esperar ali que a nossa presa viesse ter connosco. De facto, não tardou em que descobrissemos o nosso alvo, de espingarda em riste e cabeça no ar atento a tudo que tivesse penas e se movesse no cocuruto do arvoredo. Tão absorto vinha que esbarraria com qualquer de nós, não tivéssemos tomado providências para impedir alguma reacção intempestiva que pusesse em risco a nossa integridade física. Um dos meus companheiros ordenou-lhe que parasse e apontasse a arma para cima o que foi de imediato acatado. Depois de desarmado passamos à efectiva fiscalização.
Tratava-se de um "pobre diabo", jornaleiro de profissão, morador numa pequena aldeia do vizinho concelho de Monção. Trazia quatro ou cinco rolas penduradas à cinta, os documentos em ordem, licença de caça, seguro, licença de uso e porte de arma de caça, livrete de manifesto da arma e declaração de empréstimo de uma velha e ferrugenta espingarda de calibre 16, de um só cano, quase arcaica, que apresentava já um intenso desgaste. Seguidamente expliquei-lhe que exercia a actividade venatória numa zona em que tal era proibido e encontrava-se assim a praticar um crime de caça punível com prisão e multa e que implicava acessoriamente a perda dos instrumentos e do produto da caça.
O homem vacilou, desculpou-se com o argumento de que desconhecia que ali era proibido caçar, já ali vira outros e... Continuei a informá-lo de que, em consequência do delito cometido devia considerar-se detido e, como o Tribunal estava fechado, notifiquei-lhe a obrigação de comparecer perante o Juiz ás nove horas do primeiro dia útil seguinte. Não pude dizer mais nada.
Toda a resistência que as pernas do nosso homem ainda continham desfêz-se como manteiga derretida e caiu no chão. Chorou, implorou, que levássemos as rolas mas que o deixássemos ir embora, que nunca mais voltaria a caçar, que tinha duas filhas pequeninas, que... que...
Era nítido que aquele não fora o objectivo da denuncia, não era o objectivo da nossa deslocação mas não havia nada a fazer, estava em infracção e dura lex sed lex, como diz o nosso pobo...
Pensei rápido e vi que estava com um problema para resolver.
Olhei para os meus companheiros, quase tão aflito como o prisioneiro, que simplesmente encolheram os ombros.
Decidi.
Ordenei ao homenzinho que se levantasse e perguntei-lhe se aquele caminho tinha saída em direcção a Monção. Ele respondeu afirmativamente e disse-lhe que pegasse as suas coisas e, com o velocípede à mão para não denunciar a sua presença, que desaparecesse. Foi visível o alívio no seu semblante, ofereceu presunto, vinho tudo que quiséssemos, era só ir à sua casa, mas limitei-me a dizer-lhe que não perdesse tempo e se pusesse a andar antes que fosse tarde. Assim fez e rapidamente desapareceu pela estreita vereda coberta de vegetação.
De certo modo aliviados pusemo-nos em marcha em sentido contrário.
Junto ao apeadeiro encontrava-se um indivíduo com aspecto de ser alguém importante que nos interpelou se não os tínhamos apanhado, que ainda agora tinha ouvido tiros para os lados de onde vínhamos. Sim, nós também ouvimos mas devem ter fugido porque batemos tudo e não vimos ninguém. Convencido ou não, ainda nos referiu que os caçadores por ele denunciados eram de Braga, tinha-lhes dito que ali não podiam caçar mas não fizeram caso, só que depois já se tinham dirigido para a zona em que tal era permitido.
Teria sido a minha estreia a prender um criminoso, certamente aquela acção seria elogiada pelos nossos superiores...
Erramos, eu mais que os meus companheiros. Fizemos de Procurador da República e de Juiz, decidimos absolver o nosso criminoso mas ainda hoje, em consciência, considero que foi a decisão mais acertada.
Assim se fez (a minha) JUSTIÇA.
10 comentários:
Caro Eira Velha
É com muita satisfação que constato que aceitou o desafio!
Trata-se exactamente do material que faz falta.
Tem vida para contar, tem instrumento e tem jeito. Quanto à forma,seja igual a si próprio.
Venha mais música que o auditório agradece.
Abraços do Zé Guita
É não é, Eira Velha?
É assim mesmo! às vezes é preciso fazermos de Juiz e, por vezes melhor que os próprios juízes. Quem está no terreno consegue julgar com acerto muitas vezes.
Foi pena foi os tais caçadores de Braga, certamente bem mais espertos se terem pirado a tempo. Esses é que deviam ser apanhados, porque, mesmo avisados, nada quiseram saber.
Para mim, uma rola vale bem mais que esses «assassinos», a que se dá o nome de caçadores, fundamentalmente, quando matam apenas pelo prazer de matar.
O meu pai era caçador e só matava para comermos, não matava pelo prazer de matar. Cheguei a vê-lo a fazer pontaria e desistir da caçada. Já tinha um ou dois coelhos e dizia-me que a caça deveria ser respeitada. Hoje não sabem respeitar os bichos.
Um abraço,
Não li a història pourque è muito grande e como tenho de ir trabalhar não vou comentar:
sò para le diser que recebi oseu mail mas estabamos a telefonar para Portugal e pour isso não respondi.
Dezejovos um bom dia e até breve!!!
Que justiça a "sua"...
... e é assim q se quer!
(mas esqueceu-se d1 actor fundamental: fez de PR, juiz E ADVOGADO... sem ele n há justiça...)
Sinais dos tempos, Drª Rúbia. Naquele tempo os Advogados tinham mais que fazer e muitas vezes, à falta de melhor, eram os próprios agentes, devidamente mandatados pelo Tribunal, que assumiam o papel de defensor oficioso,ou algo assim, que correspondia a não haver defensor algum:) Ai de quem caísse nas teias da lei!...
Eu gostei MUITO de ler a sua história, Boaventura. Só a descrição de como era Valença deu para eu imaginar!
da Saloia Minhotada eheheh
Que bom coração! Também o delito não era assim tão grave!
Tenho um amigo que é Sargento e ele disse-me :- ás vezes tenho pena das pessoas, mas não posso fazer nada, tenho de cumprir o meu dever. Outras vezes apetece-me mata-los, mas também não o posso fazer...
beijinhos susana
Na verdade dantes até os próprios agentes da ordem faziam nos tribunais de defensores dos réus limitando quase sempre a sua intervenção ao formal: faça-se justiça. E hoje, com alguns advogados, defensores oficiosos, não se verifica mais ou menos a mesma coisa?
Há muito que deixei de acreditar na justiça. Acho que ela só funciona plenamente para quem tem dinheiro e pode contratar os melhores advogados. Para os pobres, como sempre, apenas restam as migalhas que sobram da mesa dos ricos. Fujo dos tribunais como o diabo da cruz. Por isso que concordo com a decisão que tomou relativamente ao facto descrito. Fez, na minha opinião, justiça justa e em tempo útil. Bem-haja!
M. Caldas
Parece-me que foi uma boa Justiça.
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