segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Tesouro Encantado (VI)

O Cabo da Guarda registou a ocorrência e decidiu assumir ele próprio a direcção das investigações. Era uma missão bem espinhosa porque a distância até ao local do estranho achado era considerável, sempre a subir, e tinha de ser percorrida a pé. Mas isso não era obstáculo que o demovesse de cumprir com o seu dever. Já tinha passado por situações bem piores quando efectuava o giro da montanha, chovesse ou fizesse sol, numa missão que, geralmente, demorava três dias. No dia seguinte, manhã cedo, subiria à serra para iniciar as diligências que se impunham.
Eram cinco da madrugada quando o diligente polícia saiu do Posto acompanhado por um ordenança.
Quando o sol despontou lá por detrás da Cumieira já estavam à porta da taberna do Ti Albino, em Quartas, à espera que este se levantasse para lhes fornecer o mata-bicho com que tencionavam retemperar as forças.
O veterano taberneiro era um velho almocreve que conhecia a serra como as palmas da mão, tantas foram as vezes que a atravessou com as suas mulas carregadas dos mais diversos géneros, especialmente de vinho que transportava em odres, uns sacos feitos de pele de cabra devidamente curada a preparada para o efeito. Era também um velho conhecido das autoridades policiais a quem fornecia frequentemente informações preciosas acerca do que via e ouvia. E nada melhor do que uns bons copos de vinho verde ou aguardente bagaceira de fabrico artesanal para que os assíduos frequentadores da tasca “cantassem” como rouxinóis.
Por isso era quase obrigatório as patrulhas da Guarda pararem naquele local para revigorar as forças e para “dois dedos” de conversa sempre muito útil e profícua. E enquanto mastigavam uns pedaços de broa, “empurrada” com pequenos goles de aguardente, a conversa ia fluindo. Foi assim que o taberneiro ficou a saber do objectivo da visita das autoridades e estas das secretas conversas de um restrito grupo de rapazes que havia algum tempo tinham despertado a curiosidade do anfitrião. Só que quando este se aproximava discretamente para tentar captar algo desviavam a conversa para as banalidades do costume ou dispersavam para as respectivas casas. Era de facto muito intrigante. Ali havia coisa, pela certa...
Com o estômago aconchegado pelo frugal pequeno almoço, a patrulha atacou a serra com todas as ganas. Já passava das onze quando chegaram ao local que lhes fora mencionado e o comandante concluiu de imediato, pelos vestígios existentes, que ali se tinha desenvolvido um ritual de magia negra. Só não sabia a razão da escolha daquele local. Esses acontecimentos ocorriam, geralmente, junto ou mesmo no interior de cemitérios, em encruzilhadas de caminhos rurais e até no interior das localidades. Também não sabia como relacionar o evento com o suspeito grupo de que lhe falara o taberneiro. Conhecia os rapazes, eram jovens, de boas famílias embora humildes, um pouco rebeldes como todos os jovens mas nunca lhe constara que estivessem associados a essas condutas anticristãs..., o Ti Albino estava a ficar um pouco caquéctico, coitado, já tinha reparado que as suas informações não eram tão fiáveis como noutros tempos.
Ainda era visível o desenho da estrela de cinco pontas, as pedras que serviram de altar permaneciam no centro, junto delas os cotos das velas semi-queimadas. Eram também visíveis as pretas penas e pequenos ossos dos galináceos devorados pelas feras e um pouco mais longe o cadáver de um gato preto começava a entrar em decomposição.
O Cabo da Guarda limpou o suor que lhe escorria do rosto e olhou o sol escaldante que atingia o zénite. Não disfarçava algum nervosismo com todo aquele aparato mas procurou manter a calma e até teceu algumas considerações supostamente cómicas acerca do achado. Estava calor mas não era apenas o sol de Verão que lhe produzia aquele efeito. Sentia-se sufocar dentro da grossa e incómoda farda de cotim cinzento, guarnecida de brilhantes botões de metal amarelo e apertada até ao pescoço. Bem lhe apetecia libertar-se daquele peso brutal mas não lhe era permitido pelos regulamentos e sabia que se o fizesse podia cair-lhe em cima a mão pesada da hierarquia guiada pelo famigerado Regulamento de Disciplina Militar, o célebre RDM que nos quase sessenta itens do artigo quarto definia tudo que lhes era imposto e proibido, desde a obediência cega e incondicional ao chefe até às mais íntimas relações de carácter pessoal e privado.
Bebeu um pouco de água e refrescou as mãos. Já tinha tomado nota de tudo e voltando a colocar a pesada mauser à bandoleira e sempre seguido pelo ordenança rumaram encosta abaixo até Cavenca. O seu instinto dizia-lhe que era ali que estava a chave de todo aquele mistério mas havia outra razão muito ponderosa para se dirigirem ao povoado. De facto, o esforço despendido e aqueles ares da serra tinham dado lugar a uma lazeira que qualquer coisa que se mastigasse era bem-vinda. E daquele lugar nunca saíram de estômago vazio. Era gente extremamente generosa e o pouco que tivessem dava sempre para partilhar.

1 comentário:

redonda disse...

Gostei. Está bem escrito e interessante.