domingo, 14 de outubro de 2007

Ou a Importância de ser Proprietário...

Foi, talvez, o dia mais importante da minha vida. Era um daqueles dias em que o pequeno povoado se encontrava quase deserto encontrando-se toda a gente empenhada nas lides do campo, actividade que nunca me seduziu muito e da qual procurava sempre escapulir-me.
Ao dirigir-me descontraidamente em direcção ao Regueiro, não sei com que finalidade, deparei com uma cinzenta patrulha da Guarda Nacional Republicana. Os dois paladinos da lei e da ordem pareciam meio desnorteados, tentando vislumbrar ou perceber onde se encontravam os habitantes daquele lugar perdido na serra e mal me avistaram chamaram-me simpaticamente. O que me parecia mais importante, deveria ser o comandante, perguntou-me se sabia ler e escrever e, perante a resposta afirmativa, puxou de um papel de formato A5, colocou-o convenientemente em cima do amontoado de pedras que faziam de muro, passou-me uma esferográfica e disse-me para escrever: - Visto em Cavenca, às x horas do dia tantos de tal… – Agora assinas aqui. Aqui era um espaço por baixo das palavras O proprietário. Hesitei. Eu não era proprietário de coisa nenhuma, não poderia cometer o sacrilégio de assinar tal documento. Mas o bom agente sossegou-me: - Não faças caso… faz de conta… Animado com aquelas palavras escrevi de forma perfeitamente nítida, ainda com aquelas formas apreendidas á custa de puxões de orelhas e reguadas: Boaventura Afonso Eira Velha. Foi um dia de glória.
Decorreram os anos, muita coisa mudou na minha vida e no mundo.
Por meados da década de oitenta encontrava-me em pleno Douro vinhateiro no meu local de trabalho. Procedia a um Inquérito e preparava-me para registar o depoimento de um venerando e abastado agricultor a quem, formalmente, perguntei a profissão. O homem encheu o peito de ar e respondeu solene e pausadamente: – P r o p r i a t á r i o
Em circunstâncias normais teria escrito agricultor, ou viticultor, mas aquele não era um dia normal, interrompi o auto, encaro o meu interlocutor e ripostei: – Isso não é profissão… Perante o ar estupefacto do homem continuei: – O senhor conhece o Caixote?
O António Caixote era o patriarca de uma extensa família de ciganos nómadas. Toda a gente os conhecia. Era um clã que se deslocava sazonalmente, de acordo com o calendário dos trabalhos agrícolas, ou a vender o seu artesanato ou, simplesmente, a pedir esmola. Deslocavam-se em carroças com os seus animais e os outros míseros haveres. Passavam por ali várias vezes ao ano e acampavam no Vilarelho onde possuíam uma habitação ainda recente, construída com a ajuda da autarquia que lhe cedeu o terreno, mas nunca iam para a casa. Acampavam num terreno próximo, situado junto dos depósitos de água que abastecia o burgo, o que gerava muitos conflitos por causa dos dejectos dos animais e do lixo que ali deixavam. Quando o Caixote era instado a ir para casa recusava peremptoriamente alegando que se constipava sempre que lá dormia…
Continuei o diálogo com o meu interlocutor … – Pois o Caixote também é proprietário, tem as suas carroças, os seus animais…
Notei pelo semblante do inquirido que era melhor ficar por ali. Concluído o auto, o nosso homem saiu cabisbaixo sem se despedir. De certeza que lá com os seus botões exprimia a sua indignação:
– Malditos comunistas!

4 comentários:

Anónimo disse...

e que aconteceu ao tal papel?

abraço
pingente
luísa

Eira-Velha disse...

Certamente apodreceu lá nos arquivos do Posto. Aquilo era apenas uma forma de controlo hierárquico dado que comprovava que naquele dia, àquela hora, a patrulha passara naquele lugar.
Abraço

redonda disse...

:) Pois :)

Rubia disse...

isso é digno de uma crónica no Publico! Bravo, bravo! Minha devida vénia!
(eu cada vez fico mais supresa com certos membros das autoridades policiais... para além de continuar a aprender mto com eles no meu dia-a-dia profissional "DE PROPRIETÁRIA" hehehe)