segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Pessoa, Outra Vez...

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti…
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentado entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes,
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


Álvaro de Campos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

O Andar Miudiño


Éche un andar miudiño,
miudiño, miudiño,

miudiño, miudiño,
o que eu traio.


Que eu traio unha borracheira
de viño, que auga non bebo.
Mira, mira Maruxiña;
mira, mira, como eu veño.

Que eu traio unha borracheira
de viño, que auga non bebo.
Mira, mira Marauxiña,
mira, mira como veño.

Éche un andar miudiño,
miudiño, miudiño,
miudiño, miudiño,
o que eu traio.

Foto: http://static.flickr.com/23/27796107_8347091308_m.jpg
Letra: http://www.xente.mundo-r.com/anvi/exercicios_de_lingua/exercicios/
pasatempos/cantigas.htm


domingo, 14 de janeiro de 2007

A Vezeira

Vezeira: gado que se reveza com outro nas pastagens,
em regime de apascentação comunal
(Priberam – Dicionário de Língua Portuguesa On-Line)
.

Todos os dias, bem cedo, quer chovesse, quer fizesse sol, repetia-se o mesmo ritual. O despertar sucedia com a ténue luz do dia a espreitar teimosamente pelos estreitos buracos do telhado ou pelas frinchas das portadas das janelas, únicas guarnições que protegiam as casas das inclemências do tempo. Acendia-se a lareira para aquecer os corpos e a água de unto ou as papas de milho que serviam de pequeno almoço, preparava-se o farnel que iria prover o aconchego do estômago durante todo o dia e começava a reunião dos pequenos rebanhos individuais que em conjunto formavam a designada “bezeira”, como se diz em bom português do norte.
Era a rês* de Cavenca que demandava os montes baldios, enquadrada à vez por dois ou três pegureiros, que um só não dava conta do recado. De facto, eram muitas as cortes e cortelhos de onde saíam pequenas quantidades de gado miúdo, cabras e ovelhas, que ao chegar às fragas do Rochão constituíam um rebanho de respeito, com algumas centenas de cabeças de gado miúdo, o qual deixava um cheirete peculiar por onde passava e os caminhos e carreiros cobertos de caganitas, excrementos que as águas pluviais arrastavam para os campos, constituindo um fertilizante natural de grande valor para as terras.
Mal chegavam ao monte, começavam a pastar e percorriam enormes extensões de terreno até regressar ao mesmo lugar. O percurso era quase sempre igual: passavam o Mourim, por cima da Fonte do Barro, seguia pelo Furado até ao Rego Geraldo, depois, por baixo de Bogalheiras, a Ranha, os Canados, a Chão do Rego, Santo António de Val de Poldros, dava a volta pelo Chão dos Fentos, subia ao alto da Fraga e descia a encosta,
umas vezes pelo lado de Urzeda, quase sempre pelas encostas do Arroio, Fonte Boa e Chão da Aveleira.
Pelo percurso diariamente percorrido, não havia arbusto que resistisse à voracidade daqueles pequenos ruminantes. Até o tojo, que mais tarde viria a constituir o principal obstáculo para se penetrar nas florestas e um excelente meio de propagação dos fogos, não era capaz de crescer mais do que em pequenos e raros tufos que eram periodicamente cortados para acamar nas cortes onde o gado pernoitava e ali ser transformado em estrume.
A acção dos pegureiros não era fácil. Ela consistia em conduzir o rebanho de forma que não invadisse as propriedades particulares, evitar que alguma rês se tresmalhasse ou se misturasse às vezeiras de Modelos, de Santa Marinha ou de Parada do Monte, protege-lo dos raros mas sempre iminentes ataques do lobo e transportar as crias que nasciam pelo percurso, que por vezes eram bastantes. Se a isto tudo se juntasse um dia de chuva, e nevoeiro, e neve, e vento, o que era frequente no Inverno, então o grau de dificuldade aumentava exponencialmente e não raras vezes se extraviavam algumas cabeças que eram posteriormente recuperadas junto de outros rebanhos ou isoladas no monte ou, simplesmente, devoradas pelas feras.

A vezeira de Cavenca acabou do mesmo modo que se extinguiram outras actividades de montanha. E de nada serve tentar inculpar o cerco dos Serviços Florestais, ou a emigração, ou a Revolução de Abril. As coisas têm o seu percurso natural e por muitas recordações que estes tempos nos acarretem, há que reconhecer que era um tempo de muitas carências e de muitas dificuldades. Por isso, o êxodo seria uma fatalidade e o abandono das terras inevitável. A tentar resistir à tendência ainda perdurou por algum tempo uma pequena parceria em casa dos meus pais no Rochão com as Moucas, do Lume de Parada. Por fim também nós tivemos de vender o resto de um numeroso rebanho, que então se resumia a duas cabras e uma dezena de ovelhas. Fui, com a minha irmã Anastásia, vendê-las à feira da Portela do Alvite e renderam em conjunto, depois de muito regatear, a importância de 15 notas, se a memória não me atraiçoa. Para quem não sabe, eram notas de 100 escudos, seriam hoje sete euros e meio.

Durante muitos anos, por cima de Cavenca, foram visíveis desde muito longe os trilhos da rês, hoje cobertos de mato. Eram pequenos carreiros que convergiam para um trilho maior e este descrevia uma diagonal pela encosta, desde o Chão da Eirinha até desembocar, como um funil, num ponto determinado, no cimo da povoação. A partir dali, o rebanho ia-se diluindo, procurando cada rês o seu curral de forma instintiva e certeira.

* Rês é qualquer quadrúpede que serve de alimento ao homem. Porém, no Alto Minho, é comum designar-se por rês o rebanho de cabras e ovelhas e por gado as manadas de vacas ou bois.

Na Foto: Paisagem de Santo António de Val de Poldros

Coimbra, 14 de Janeiro de 2007

sábado, 6 de janeiro de 2007

O Senhor Grifo

Não era difícil entabular conversa com ele. O Café da Paz, local estrategicamente situado no Largo do Chafariz em Alijó e frequentado pelas elites locais onde se debatiam os assuntos de maior relevância e actualidade, era um dos sítios onde mais tempo permanecia, na companhia do seu inseparável amigo, Senhor Martinho.
Ambos tinham sido comerciantes de sucesso mas o tempo não perdoa e tiveram de entregar os negócios aos mais jovens. No caso do Grifo, foi o seu filho Luís que deu continuidade aos negócios do pai.
Era um estabelecimento comercial onde de tudo se vendia mas a organização do espaço não tinha nada a ver com os modelos actuais. Ali reinava o caos: pesticidas, ferragens, sementes, artigos escolares e de escritório, impressos da Imprensa Nacional Casa da Moeda, valores selados e as mais diversas utilidades domésticas disputavam o limitado espaço de forma tal que parecia impossível localizar qualquer produto que não estivesse perfeitamente visível. Contudo, o Luís Grifo não tinha a menor dificuldade em desencantar do meio daquela barafunda o que quer que lhe fosse solicitado. Tenho a certeza que se contratasse um técnico para lhe organizar o espaço de acordo com as modernas exigências do mercado o Luís ficaria perdido no meio de tanta ordem.
Mas o tema desta dissertação não é o filho mas o pai. Como dizia no início, a conversa com o Grifo fluía naturalmente e nunca faltava tema. Era uma figura popular, arreigado amante da sua terra, embora no Inverno rumasse a sul, para casa de uma filha no Algarve, que era um clima mais ameno e menos agressivo para as articulações, já bastante deformadas pelo decorrer dos anos.
E quando o tempo melhorava, lá voltava célere para a sua amada terra, para a companhia dos seus amigos. Então, sempre acompanhado pelo Sr. Martinho, percorria diariamente as principais artérias da Vila, da Avenida 25 de Abril até ao Bairro do Pombal, passando pelo Largo do Bispo de Viseu, Largo do Chafariz e Rua General Alves Pedrosa, da Avenida Sá Carneiro ao Bairro do Hospital, passando pelo Tribunal e Centro de Saúde. Os seus olhos, a disparar cada um para seu lado fruto de um antigo estrabismo (o que lhe dava muita vantagem porque nunca se sabia em que alvo se fixava), captavam tudo que se passava, de tal modo que estava sempre actualizado sobre o que ocorria na localidade.
Frequentemente passavam pelo posto policial, cumprimentavam o pessoal de serviço e, sem cerimónia, dirigiam-se ao comandante – bom dia senhor comandante, apresenta-se a patrulha à vila sem novidade… – e da mesma forma se despediam para não perturbar o trabalho, que por vezes era muito.
Não sei que habilitações académicas possuía, talvez a escolaridade obrigatória, mas os seus conhecimentos eram muitíssimo superiores. Das muitas coisas que lhe ouvi encantado, retive um poema que ele repetia com muita graça e penso que será este o único suporte material de um património imaterial que se perde irremediavelmente por não haver o cuidado de o preservar:
Há três coisas em Alijó
Que não há mais neste País:

Água no Chafariz,

O delegado era preto

E o padre era juiz.

Não importa a métrica, menos ainda a descoordenação dos tempos verbais. Seria imaginação ou teria mesmo ocorrido tal situação? Da trilogia referida apenas o chafariz lá estava e ainda está. Diziam que quem bebesse a água que dele emanava ficaria para sempre agarrado à terra. Eu não bebi e mesmo assim fiquei preso para sempre àquele recanto.
Na hora de recordar o meu amigo Grifo, aqui presto a minha homenagem à terra que ele tanto amava e que tão bem me acolheu.


Coimbra, 06 de Janeiro de 2007

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Em Janeiro Sobe ao Outeiro

“Em Janeiro sobe ao outeiro,
se vires verdejar põe-te a chorar,
se vires terrear põe-te a cantar”.


Ouvi muitas vezes, da boca de meu Pai, este velho provérbio que faz chegar até à actualidade os ecos da sabedoria popular, por transmissão oral, e sendo proferido por quem era, soava aos meus ouvidos como algo muito sério e de grande sapiência, cujo significado eu bem percebia excepto o da palavra terrear. E como não era “homem” para ficar com dúvidas, perguntava: - O que quer dizer terrear, Pai? Sem recurso a qualquer dicionário, ele esclarecia-me que ver terrear era ver os campos da cor da terra. – E isso é bom? É bom, sim, porque em Janeiro é tempo de fortes geadas e nevões que, além de destruir tudo que é verde, purifica a terra e prepara-a para na Primavera fazer desabrochar do seu ventre as sementes que lá repousam ou que as pessoas nela lançam para mais tarde recolher os frutos do seu trabalho. Pelo contrário, o verdejar em Janeiro significa que os rigores do Inverno virão mais tarde e será um ano de fraca produção agrícola.
Mas o outeiro de que fala o provérbio, para mim não era apenas a designação topográfica vaga e genérica de uma mera configuração do terreno, não. Ele era bem real e situava-se ao fundo de um enorme maciço rochoso designado por Couto da Coroa, ou Cotacroa, como vulgarmente o designávamos. O Outeiro era uma pequena Branda típica do Alto Minho, para onde os agricultores levavam o gado por meados de Junho, após a realização dos trabalhos agrícolas que esgotavam as pastagens e forragens arrecadadas no ano anterior. Ali permaneciam até princípio de Setembro, alimentando o gado nas pastagens dos baldios, do Furado até ao Rego do Geraldo e com tenra e perfumada erva segada nos campos de feno em volta das pequenas casas onde se abrigavam.
Já não existem brandeiros no Outeiro mas ainda me lembro bem de alguns que ali todos os anos repisavam os mesmos caminhos. O Chico Castelo, de Quartas, a Delmira de Rodas, do Freixo, a Inocência, de Cavenca
Todas as manhãs, ainda o sol repousava lá para os lados de levante, já eles subiam ao monte com o gado a pastar, recolhendo-o aos respectivos currais com a pança cheia de tenras ervas logo que o calor do sol se tornava mais inclemente. Após o almoço, reuniam-se à sombra de um carvalho secular, a conversar ou a dormir a sesta, retomando a actividade pela tardinha, quando o calor esmorecia.
Ia muitas vezes com meu Pai, em pequenino, ao Outeiro para tornar a água que pertencia a um pequeno poulo de feno que lá possuíamos e jamais esquecerei a alegria que cada vez que lá subíamos me invadia, principalmente na Primavera.
Meu Pai transformava cada viagem numa lição de vida: era uma pedra que colocava na parede de onde tinha caído, uma gateira que limpava para que a água da chuva não arruinasse o caminho, uma silve que aparava para desenvencilhar a passagem, outra pedra da calçada colocada no devido lugar para que os carros de bois não tombassem…Fazia instrumentos musicais com cascas de sanguinho e de castanheiro, construía carrinhos de brincadeira com rodas de cortiça e pequenos galhos de árvores, colhia frutos silvestres (amoras e cerejas) que eu comia deliciado, tudo acompanhado de descrições pormenorizadas, que conversar, para ele, era uma necessidade e um imenso prazer.
E na Primavera, os campos do Outeiro eram autênticos jardins, cobertos de feno e de flores silvestres, exalando um aroma inconfundível, por onde fervilhavam miríades de insectos, aves e répteis que impregnavam o ar de inúmeros sons.
O Outeiro ainda lá está mas já não tem a vida que tinha nesse tempo nem os meus olhos o vêm como outrora. Os brandeiros desapareceram, o velho carvalho já há muito foi abatido, alguns campos estão cobertos de mato. Mas quando lá tornar, ele há-de volver a ser como era. Basta fechar os olhos, libertar os sentidos e voltar atrás no tempo. E isso, só eu poderei fazê-lo.

Foto: Branda de Aveleira

Coimbra, 28 de Dezembro de 2006

domingo, 17 de dezembro de 2006

O Meu Natal

Está a chegar.
É uma festa mágica pelo simbolismo, pela luz, pela tradição, pelo espírito fraterno que mexe com as pessoas, pelo brilho nos olhos das crianças, pelas recordações…
O meu Natal tem tudo isso e … muito mais…
O meu Natal transporta-me sempre àquele tempo em que, acima de tudo, era o tempo de encher a barriga, não de mil e uma guloseimas, daquelas que enchem as bancas das grandes e pequenas superfícies comerciais mas de coisas básicas como o bacalhau com batatas, o arroz de polvo, os formigos, a “sopa” de bacalhau, que melhor sabia no dia seguinte convenientemente requentada, as rabanadas, simples fatias de pão de trigo embebidas em vinho tinto previamente fervido com açúcar e canela…
Nessa noite, o fogo da lareira também era especial. A lenha era criteriosamente seleccionada, grossas achas de carvalho que aqueciam o ambiente e as nossas almas. E o fumo que escorria pelas juntas dos negros cobertos de telha vã e se espraiava e desfazia lentamente pela encosta abaixo (sinal de bom tempo) criava um cenário digno da palete dos melhores artistas plásticos.
Ninguém ousava colocar sapatos na chaminé, nem peúgas, nem acalentar a esperança da chegada do Pai Natal. Sabíamos que aquele lugar não estava na rota desta personagem criada pela sociedade de consumo mas éramos felizes.
Felizes, sim. A felicidade é tanta coisa que pensar que é impossível é o maior dos equívocos humanos.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Cavenca

Situa-se no Distrito de Viana do Castelo, nas coordenadas 42°, 1', 60” de latitude Norte e 8° 18' de longitude Oeste. É a aldeia mais alta da freguesia de Riba de Mouro, com os seus 823 metros de altitude.
Cavenca está ali, no mapa.
No mapa e nas minhas recordações. Foi ali que adquiri a consciência do SER, num contexto político e social muito diferente do actual.
Eram tempos difíceis, aqueles em que eu me criei e diziam os mais velhos, lá saberiam porquê, que a minha geração já surgira num clima muito mais favorável.
Naquele tempo o dia tinha um tempo bem definido, do nascer ao pôr do sol. De seguida aconchegava-se o estômago com uma parca ceia e cama que se faz tarde, que no outro dia era dia de labuta.
Havia sempre que fazer. De Inverno, as mulheres fiavam o linho e a lã, urdiam as teias e fabricavam os bragais que guarneciam as camas, as mesas e os corpos das pessoas. Os homens ocupavam-se em trabalhos de construção civil: corte e serração de madeiras, talhe de granito, reparação e construção de casas e muros, limpeza de regos e levadas, pastoreio, mil e uma coisas…
No final do Inverno começavam as plantações e sementeiras, que terminavam em princípios de Junho. Depois era o cultivo, a rega, as segadas de feno, as colheitas dos cereais, semear o centeio, recolha de lenha e tojo e recomeçar o ciclo.
Os produtos do campo tinham valor e eram utilizados nas trocas comerciais. Mas o dinheiro era muito escasso. Por isso, era comum pessoas morrerem de apendicite, ou de pneumonia, ou de leucemia, ou de gripe. Nunca sem antes se aprontarem espiritualmente com os santos sacramentos, uma entranhada crença de que dali se partia para uma vida melhor… Não havia segurança social, nem sistemas de saúde, nem reformas, nem RSIs, nem subsídios de desemprego, nem apoios para arrancar oliveiras, ou plantar videiras, ou cultivar tomates, ou projectos fraudulentos, ou cursos de “formação”.
As vias de comunicação eram caminhos de pé ou de carros de bois, ora íngremes, ora suaves, umas vezes em terrenos abertos, outras formando profundas trincheiras à custa do uso e da erosão dos solos. A primeira estrada, se assim se poderia designar, que rasgou a serra desde Riba de Mouro até S. Bento do Cando, de Lamas do Mouro ao Mezio, foi construída pelos Serviços Florestais, os mesmos que geraram muitos empregos e se apoderaram dos imensos baldios, contribuindo definitivamente para a falência da melhor riqueza das populações serranas – a pastorícia.
Era tempo em que os usos e costumes faziam lei e a palavra de honra constituía melhor garantia que na actualidade um contrato redigido em cartório.
Saudades desse tempo? Não, apenas das recordações.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Bicarbonato de Sódio

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!


Álvaro de Campos

sábado, 25 de novembro de 2006

Cheias

Choveu. Não é nenhuma novidade, atendendo a que estamos em tempo de chuva. Voltando a rebuscar nas minhas memórias longínquas, evoco os dias chuvosos e frios de outrora, dias e dias seguidos de chuva intensa que olhávamos das janelas desguarnecidas de vidraças, arrastando para os campos enormes quantidades de dejectos que os animais depositavam pelos caminhos e que serviam de fertilizante natural.
Ao fim de muitos dias de chuva sem parar vinham os estragos – os ribeiros que transbordavam, os valados que ruíam, as bolsas de água acumuladas no subsolo que rebentavam e arrastavam tudo por onde passasse a violenta enxurrada, árvores que caíam, penedos que se desprendiam e rolavam encosta abaixo… Era tempo de esvaziar os palheiros para alimentar os animais, de consumir os proventos acumulados no verão, formigas incansáveis sem tempo para folgar.
Mas de cheias não ouvíamos falar. Lá na minha terra não havia disso e as notícias não se difundiam na hora como actualmente. Mesmo assim, havia um cuidado extremo com a limpeza dos cursos de água, nalguns casos por receio da força da lei, em geral porque havia o sentimento de zelo que impelia as pessoas a se precaverem e a demonstrarem um respeito absoluto pelas forças da natureza. Era inconcebível ousar obstruir os cursos naturais da água ou opor-se ao estabelecimento de gateiras por onde se desviavam as águas pluviais para não danificarem os caminhos, únicas vias de comunicação que existiam na época e de vital importância para as populações.
Contudo, os tempos mudaram e, como disse o poeta, as vontades também. A memória é curta e cometem-se atropelos orográficos e ambientais de bradar aos céus. São esses atropelos que provocam muitos dos malefícios que ultimamente se têm feito sentir como consequência das fortes chuvadas.
Estranho é apenas o facto de em tão pouco tempo, mesmo tendo em conta a intensidade da chuva, ocorrerem enchentes como as que se verificaram nestes dias.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

O Baixinho

Naquele dia, uma segunda feira do mês de Fevereiro de 1986, o movimento ao cimo da Avenida Carvalho Araújo em Vila Real era normal e ninguém reparou no velho Land Rover cinzento da Guarda Nacional Republicana que acabava de estacionar em frente ao Tribunal. Porém, quando os seus ocupantes saíram da viatura e se dirigiam para a entrada do Palácio da Justiça, todos os olhares convergiram para a caricata figura do homenzinho ladeado de guardas rigorosamente fardados da cor do jeep, com os pulsos fortemente agrilhoados atrás das costas. Que crime teria cometido aquele minúsculo indivíduo para ali comparecer daquela arte?
O dia anterior fora dia de eleições presidenciais, por sinal, o corolário de uma das campanhas mais emotivas e que Mário Soares recordará como a sua maior vitória política de sempre ao derrotar surpreendentemente Freitas do Amaral à segunda volta.
Como era habitual em actos daquela natureza, todo o efectivo do Posto se encontrava concentrado no Quartel, pronto a responder de imediato a qualquer pedido de intervenção nas mesas de voto espalhadas pela respectiva área de acção.
Contudo, o dia decorreu sem qualquer incidente, em mais uma demonstração de enorme civismo da população duriense.
Urnas fechadas, era hora de contar os votos e promover a sua entrega no Governo Civil, tarefa que apenas implicava o empenhamento de dois ou três elementos policiais, preparando-se os restantes para regressar a casa a fim de retomarem as suas tarefas de rotina. Então, o telefone soou nervosamente, não augurando nada de bom. Era uma chamada para acorrer à localidade de Castedo onde havia sido cometido um homicídio.
Prontamente foi mobilizado um grupo de quatro guardas que a toda a pressa se deslocou à simpática localidade onde supostamente se dera o crime, a qual distava apenas uns seis quilómetros da sede do concelho.
Não foi difícil referenciar o local onde estava a vítima dada a aglomeração de pessoas na rua que mal viram aparecer o inconfundível jeep se insurgiram ostensivamente contra a força policial pela demora com que valeram ao pedido de intervenção.
Sem responder às provocações, apeei-me da viatura, indaguei do local onde se encontrava a vítima e dirigi-me para uma estreita viela pelo meio de uma pequena multidão consternada e estupefacta com o sucedido.
À entrada de uma velha casa de dois pisos que servia para guardar animais e recolher os produtos agrícolas, mesmo ao fundo de umas escadas em madeira que davam acesso ao piso superior, jazia na situação de decúbito dorsal uma jovem que não teria mais de vinte anos, lívida como a cera, os braços inertes ao longo do corpo e a cabeça ternamente apoiada no regaço de uma humilde mulher da plebe.
Ainda lhe tentei auscultar o pulso mas debalde. A mulher que sustentava a cabeça abanou negativamente a cachimónia como forma de censurar a minha ousadia de duvidar daquilo que me fora comunicado como certo.
De imediato ordenei que fossem convocadas as autoridades competentes com vista ao cumprimento das formalidades legais e dei início, no próprio local, às diligências de investigação.
Como já referi, a freguesia de Castedo do Douro dista cerca de seis quilómetros da sede do concelho – Alijó. Situa-se geograficamente num dos locais mais pitorescos da região duriense, em pleno coração da Região Demarcada do Douro, sobranceira ao rio que lhe dá o nome. É uma aldeia bonita e geralmente pacata, habitada por alguns ricos produtores de vinho generoso e outros agricultores, sendo na sua maioria pequenos proprietários que ao mesmo tempo exercem actividades ligadas ao cultivo do precioso néctar nas extensas propriedades dos primeiros.
Confesso que nunca nutri grande simpatia por aquelas gentes. Eram, salvo raras excepções, sorumbáticos, desagradáveis, sempre prontos a fazer justiça pelas próprias mãos, um perfeito contraste com a beleza natural de que desfruta a localidade.
Nesse dia, pela tarde fora, os jovens da aldeia promoveram um bailarico e divertiram-se alegre e descontraidamente.
Entre eles encontrava-se a jovem que agora jazia sem vida. Algum tempo antes tinha iniciado um namorico com um rapaz de uma aldeia vizinha mas havia uns dias que decidira pôr fim ao namoro e nessa tarde procurou divertir-se dançando ora com um, ora com outro dos rapazes ali presentes. E o antigo namorado, roído de ciúme, assistia ao folguedo tentando disfarçar a dor-de-cotovelo que tal folia lhe causava.
No fim da tarde tudo volve à normalidade e cada um regressa ao lar. Ciente dos seus deveres, a nossa jovem vai tratar dos animais e dirige-se à casa que se situa do outro lado da viela, quase em frente à casa onde morava com os pais e irmãos, subiu as escadas para recolher a ração e ao descer o ex-namorado esperava-a de caçadeira em punho.
Ninguém ouviu qualquer discussão, apenas um tiro. Os familiares que acorreram para ver o que se passava já a encontraram sem vida. As roupas estavam intactas e apenas uma enorme mancha de sangue revelava que os ferimentos mortais se situavam na parte inferior do abdómen.
Era noite e de nada servia tentar procurar o criminoso pelos sinuosos caminhos que ligavam Castedo a Cotas, uma aldeia vizinha onde residia o principal suspeito. Mesmo assim, uma patrulha dirigiu-se à casa dos pais para saber se ali se encontrava. Não estava em casa e os pais não sabiam dele.
Após a remoção do cadáver para a morgue regressamos à base. Eram duas horas da manhã quando me dirigi para casa, depois de dar instruções ao efectivo para reiniciarmos a investigação de madrugada.
Tentei em vão dormir. Pela minha mente perpassavam as imagens macabras do homúnculo, de espingarda em riste, a disparar selvaticamente sobre a vítima. Não uma mas duas, três, uma infinidade de vezes. Conhecera o protagonista desta narrativa algumas semanas antes, precisamente numa taberna da aldeia de Castedo do Douro, com uma cerveja na mão e ar de quem já tinha emborcado mais três ou quatro e despertou-me a atenção precisamente por causa do seu aspecto infantil, embora bem constituído fisicamente. Era baixinho, talvez um metro e quarenta, imberbe e disse-lhe que não podia permanecer naquele lugar por ser proibida a presença a menores de dezasseis anos. Perante uma gargalhada geral, fui informado que embora não o parecesse, o miúdo tinha dezoito anos de idade. Confirmei-o através do bilhete de identidade e gravei aquela figura no arquivo encefálico. Quando me foi descrito no dia em que se deu esta triste narração referenciei-o de imediato.
Ainda o sol não dava sinais de despontar no horizonte já me encontrava a pé para dar início a um dia de trabalho que se adivinhava exaustivo. Porém, fui logo informado de que o suspeito se encontrava em casa dos pais. Apenas lá chegamos, foi o próprio pai que o entregou e acompanhou até ao Posto de onde seguiu devidamente escoltado para o Tribunal.
Ficou em prisão preventiva.
Na audiência de julgamento ficou provado que era um jovem frio, reservado, de difícil relacionamento institucional e não demonstrou qualquer laivo de arrependimento. Foi ainda provado que foi a casa buscar a arma do crime, dirigiu-se de novo à aldeia onde morava a vítima e esperou-a na casa onde a assassinou, tendo para o efeito introduzido a arma por baixo das saias da vítima e disparado sobre o baixo ventre da desditosa jovem.
Foi condenado a dezoito anos de cadeia.

domingo, 5 de novembro de 2006

Mar Adentro

Mar adentro,
mar adentro.

Y en la ingravidez del fondo
donde se cumplen los sueños
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.

Un beso enciende la vida
con un relámpago y un trueno
y en una metamorfosis
mi cuerpo no es ya mi cuerpo,
es como penetrar al centro del universo.

El abrazo más pueril
y el más puro de los besos
hasta vernos reducidos
en un único deseo.

Tu mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras
'más adentro', 'más adentro'
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.

Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto,
para seguir con mi boca
enredada en tus cabellos.


Ramón Sampedro

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Coisas do Outro Mundo

Era um dia de Outono límpido e soleado. Eu e meu irmão (e padrinho) Daniel, após um frugal pequeno-almoço, jungimos as vacas ao carro e rumamos até ao Baloucal onde iríamos prover lenha para amenizar os rigores invernais, que nessa época não eram de brincadeira.
A toponímia regional é muito enigmática. Por mais que rebusque informação ou tente relacionar o nome com algo compreensível, não consigo descortinar forma de entender a designação “Baloucal” para aquele profundo e estreito tergo. Parece que poderia ser um sítio onde proliferassem muitas baloucas mas… o que é isso? O Baloucal era uma propriedade típica daquela subregião minhota, situada num vale profundo, cavado numa encosta dos contrafortes da Serra da Peneda. Numa vertente ficavam os lameiros de feno e pasto, na encosta oposta, mais sombria e íngreme, ficava um monte densamente povoado de castanheiros, carvalhos, vidoeiros e outras espécies inferiores, nomeadamente giestas e urzes.
Enquanto cortávamos a madeira e a carregávamos no carro, junto ao pequeno córrego cuja água límpida rumorejava ligeira em minúsculas cascatas, as vacas pastavam em liberdade, deliciando-se com as tenras ervas que brotavam do solo e espalharam-se sem rumo definido, pela encosta acima, perdendo-se da nossa vista no meio do arvoredo.
A luz solar, já mais abreviada devido à proximidade do solestício de Inverno, começava a dar sinais de esbatimento, acentuando ainda mais as sombras do arvoredo.
Durante a azáfama em que estávamos empenhados, tudo decorria quase automaticamente e não era necessário gastar palavras para cada um fazer o que lhe competia.
Contudo, algo pairava no ar que destoava do ambiente idílico e bucólico do local, algo que, vindo de algum lugar indefinido, penetrava nos meus ouvidos e ali permanecia dando por vezes a sensação de que provinha do interior do cérebro, e fazia com que ficasse cada vez mais atento ao que nos rodeava.
Não era a borbulhenta água que deslizava veloz pelo regato, não era a brisa do vento que sacudia a copa das árvores, não era ave ou animal bravio que por ali deambulava, também não era nada parecido com sons humanos… e parecia tudo isso…
Após dispor toda a carga em cima do chedeiro (nome que ainda é usado na Galiza para designar a mesa do carro de bois) e fortemente amarrada ao mesmo através de uma grossa corda de sisal esticada à força de braços, meu padrinho ordenou-me que fosse tocar as vacas encosta abaixo para lhes colocar a canga e jungir novamente ao carro.
Sem ripostar comecei a subir pela vertente acima mas aquele ameaçador som não parava de zurzir os meus ouvidos. Tentei, em vão, perscrutar por entre o arvoredo a origem de tal zoeira. Procurei relacioná-la com a chiadeira de outros carros de bois que poderiam rodar algures, por outros caminhos… mas nada. Aquilo era diferente de tudo que os meus ouvidos tinham sentido, era triste, lúgubre, assustador. Cheguei próximo do último animal que precisava bater encosta abaixo e num assomo de coragem subi para uma pequena rocha para mais uma vez me certificar donde vinha tão pungente choro. Nesse instante o volume daquele tenebroso lhanto incrementou-se, tornou-se ainda mais indecifrável e parecia aproximar-se de mim rapidamente. Um calafrio glacial percorreu o meu dorso e todos os cabelos do meu corpo se retesaram como os aguilhões de um ouriço-cacheiro. Sem delongas, desci a encosta, jungimos os animais ao carro e regressamos a casa.
O desconhecido carpido cessou tão misteriosamente como tinha surgido. Pelo caminho pensava no sucesso e fiquei com a convicção de que tudo não tinha passado de uma invenção minha.
Chegados a casa e depois de arrumar o gado e a lenha, retemperávamos forças com uma parca merenda de broa, chouriço e vinho, à conversa com a nossa mãe, quando inesperadamente meu irmão comentou que tínhamos regressado mais cedo do que seria normal porque “parecia que andava o diabo no monte”.
Nunca soube o que foi que ele ouviu nem se era idêntico ao que eu ouvia mas que era aterrador, lá isso era…

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Dia de Todos os Santos


Estão ali, transformados em pó e misturados com os sedimentos das rochas, os meus avós, pais, irmãos, sobrinhos, tios, primos, amigos…
Hoje é dia de lembrá-los…
Que descansem em paz.

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Feijoada de Lampreia

“As lampréias ou lampreias são peixes de água doce ou anádromas com forma de enguias, mas sem maxilas. A boca está transformada numa ventosa circular com o próprio diâmetro do corpo, reforçada por um anel de cartilagem e armada com uma língua-raspadora igualmente cartilaginosa. Várias espécies de lampreia são consumidas como alimento”.
É assim que vem descrita na Wikipédia e parece-me uma boa descrição.
Elas vêm aí.
O instinto impele-as a percorrer milhares de quilómetros para virem desovar aos mesmos rios onde nasceram e fazerem as delícias dos seus apreciadores entre os quais me encontro.
As formas mais conhecidas de confeccionar o famoso ciclóstomo são o arroz de lampreia e a lampreia á bordalesa. Mas há outras. E a minha descoberta mais recente resultou numa verdadeira revelação que fez as papilas gustativas entoar um hino à boa culinária de raiz popular. Foi a feijoada de lampreia.
Eu gosto muito de feijão. Quer seja nas tripas, à transmontana, à brasileira, o arroz ou massa com feijão ou simplesmente uma boa sopa do mesmo. Sempre que tenho oportunidade não me coíbo de acrescentar mais um micromilímetros à minha respeitávelzita proeminência abdominal, ainda que me custe umas deslocações mais frequentes à casa de banho para espairecer.
Porém, aquele prato bem recheado de troços do saboroso agnatha, generosamente regados com molho feito com o respectivo sangue, vinho tinto e alho e salteados com feijão branco macio e aveludado fez esquecer tudo quanto de melhor, deste magnífico alimento, até agora a minha pança arrecadou.
Se lhe acrescentarmos umas cuncas de pinga do verde tinto, da boa, coisa que também muita gente desconhece, temos reunidos os ingredientes para superar, com um sorriso rasgado de orelha a orelha, os engulhos provocados por um malfadado golo de “porto” em tempo de (des)compensação.

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

A Queda de um Anjolas*

O rubicundo frade arfava como uma velha locomotiva e o calor da sua predicatória embevecia a plateia. Pela comissura dos lábios brotava-lhe um fio de espuma e umas gotas de suor tremeluzente criavam uma aura de santidade na sua enorme coroa.
Era uma semana de intensa evangelização, com cânticos, missas, rezas, comunhões e outros ofícios divinos, que congregava toda a comunidade paroquial, imbuída de fé e ávida da Palavra transmitida de forma arrojada e sábia pela boca daquele frade pertencente a uma congregação sedeada em Barroselas – os missionários passionistas.
Todas as madrugadas, ainda o Sol não dava sinais de vida, velhos e novos, homens e mulheres, abandonavam a quietação do cálido almadraque e rumavam até à Igreja Matriz para assistir e participar em mais um acto de devoção, abrilhantado pelo discurso vigoroso e enfático do anafado frade.
Naquele dia, o pequeno “rebanho” descia o Monte do Santo, pelo caminho florestal, circundado de espessos pinheiros que mais enegreciam a escura noite, cantando e rezando, numa clara demonstração de fé e de obediência ao seu pastor, sem necessitar de outra luz que não fosse a que lhe despontava da alma pura e cândida.
Então, algo estranho aconteceu que gerou uma enorme confusão no compacto grupo, fazendo vacilar os cânticos estridentes e pouco harmoniosos que as gargantas ainda ensonadas conseguiam produzir. No meio da desorientação geral, com gritos e pragas à mistura, várias pessoas rebolaram pelo chão e eu, sem saber donde vinha o castigo, fui contemplado com um enorme choque na testa que me fez perder o rumo e ver uma constelação inteira de estrelas, apesar de saber que nenhum luzeiro se vislumbrava através do tecto nebuloso e negro que cobria o firmamento.
Ainda pensei que era castigo divino por qualquer quebranto da minha devoção mas, quando me recompus da brutal bordoada enxerguei o vulto colossal e agigantado de um qualquer quadrúpede, mais desmedido ainda pela enorme carga que transportava em cima da albarda que lhe cobria o dorso, imóvel no meio do caminho.
Era uma das mulas do Zé da Arrieira que, àquela matinal hora lá ia carregada de graníticos esteios para as vinhas de um qualquer cliente de Lijó ou da Gave, sem outro farol que não fosse o seu instinto bestial e contra o topo de um dos quais eu tinha enfiado a minha frágil frontaria, agora enfeitada com um enorme “galo”.
Coimbra, 18 de Outubro 2001


Foto: Igreja paroquial de Riba de Mouro
* Era para ser Anjo mas para evitar plágios...

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade.

domingo, 22 de outubro de 2006

No "Baú" das Recordações

Por vezes, muitas vezes, sinto vontade de baixar a persiana, apagar a luz e mergulhar no “baú” das minhas recordações: retornar à infância cada vez mais longínqua, rever a luz do dia como uma esperança que renasce, olhar o horizonte e sentir vontade de o ultrapassar para ver que vidas existiam do outro lado, percorrer caminhos que já se apagaram, relembrar amigos nunca mais encontrados, familiares já desaparecidos, paisagens remodificadas… tanta coisa que parece nada mas que era toda uma vida cheia de ilusão, de fé e de confiança…
Mexo, remexo e no meio de tanta insignificância vão aparecendo imagens e cenas, pequenas peças de um puzle tão original que é a via das pessoas. Penso que não haverá no mundo presente, passado ou futuro dois quadros precisamente iguais… A vida é mesmo isso… uma tela em branco que se vai preenchendo dia a dia, umas vezes de tons alegres, outras de tons de cinza, uns dias a cores, outros a preto e branco, traços de tempo quente, outros de tempo frio, outros ainda de temperatura amena e suave e também os raios, os coriscos e as tempestades.
Não são apenas as mudanças sociais e ambientais que fazem a diferença. A idade também transforma as coisas e os nossos olhos cansados procuram um termo de comparação e adaptação ao presente. De mansinho sente-se o cansaço, o desalento, o esmorecer da chama. E também a força, a esperança, a fé. Acabamos por sofrer um processo de transformação lento e constante. Resistimos e acabamos por ceder. E concluímos que assim é que deve ser.
Então, o meu “Baú” é apenas um escape em face da dúvida, da adversidade ou da incerteza. É ali que muitas vezes encontro a energia que me abandona, o alento de que necessito para continuar a caminhada cujo termo é incerto mesmo tendo a certeza que um dia chegará.
A infância e a juventude marcam indelevelmente o resto da vida das pessoas. Admito que haja quem não goste de “regressar” às origens, há pessoas bem piores que animais e se não se pode exterminá-las, pelo menos podem-se ignorar (ou tentar). Para mim é um bálsamo que me conforta, o laço que me dá a paz de espírito, o sopro que me dá alento.
Há muitos anos que ando “desenraizado” e tenho conhecido muitos lugares, muita gente, muitas formas de ser e de estar, lugares onde me sinto bem, gentes com quem gosto de conviver, formas de ser e de estar que me garantem uma vida melhor. E no entanto, tudo que me rodeia continua a ser estranho, frio, distante. Pelo contrário, sempre que percorro os caminhos da minha juventude, vejo marcas familiares em tudo que os meus olhos divisam e algo me diz “bem-vindo a casa”. Há marcas que nos fazem crer que o tempo não passou por ali – a fonte donde bebíamos água pura e fresca, o roble secular que nos dava sombra e abrigava da chuva, o rochedo em que nos sentavamos para descansar, conversar ou simplesmente contemplar a paisagem, os sulcos cavados na rocha por inúmeras passagens das rodas ferradas dos carros de bois, o negro vestir daquelas mulheres para quem a vida sempre foi daquela cor.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Caminhos e Descaminhos

Em linha recta, Cavenca distará uns escassos cinco quilómetros da Baldossa, o último lugar ao cimo da Gave, já no limite com Parada do Monte. Contudo, o serpentear dos caminhos que era necessário percorrer para alcançar este lugar, faziam com que o percurso se alargasse para uns nove ou dez quilómetros.
Era preciso subir e descer encostas, atravessar riachos e córregos escuros, transpor recantos tenebrosos por meio do espesso arvoredo de carvalhos, castanheiros, pinheiros e outra vegetação arbórea, descrever as curvas de nível em estreitos e pedregosos carreiros desenhados ao longo do tempo por inúmeros passantes, tudo por um terreno ermo e desolado.
Pois foi esse o percurso que me propuseram fazer certa madrugada, em que minha madrinha Judite e minha irmã Anastasia decidiram ir à Espanha fazer compras, que era mais barato.
Na Baldossa juntavam-se a outras companheiras e, todas juntas, rumavam até Lamas do Mouro, passavam a raia seca em Rodeiro por caminhos de contrabandistas, faziam as compras e regressavam carregadas com a preciosa mercadoria, que não era mais do que bens essenciais para a sobrevivência das pessoas mas que se considerava um grave atentado à economia nacional. Isto se a Guarda Fiscal não aparecesse e lhes arrestasse tudo...
Após uma rápida soneca, acordei estremunhado com umas vigorosas pancadas na porta do pardieiro onde dormia e, resignado, vesti-me, tomei um cajado e uma lanterna cujo combustível era o azeite e, juntamente com as “contrabandistas”, pusemo-nos a caminho.
Em grupo a caminhada não era difícil e ao fim de pouco mais de duas horas estávamos na Baldossa, onde o resto do grupo esperava.
Como já não era mais preciso, despedi-me e iniciei a viagem de regresso. Só nessa altura me apercebi que eram três horas e meia da madrugada, uma hora boa para estar a dormir descansado.
Então, um calafrio de medo percorreu o meu corpo e comecei a pensar se seria avisado percorrer sozinho aquele itinerário, povoado sabe-se lá de que feras ou de coisas do outro mundo!...
Mas não tinha alternativa. A minha mente esforçava-se por apenas desenhar o estreito carreiro que me traria de volta ao lar mas não conseguia alhear-me da pavorosa escuridão que me rodeava, apenas vencida num raio de escassos centímetros pelo frouxo luzeiro da lanterna que pendia da mão crispada sobre a pega.
Decididamente meti-me a caminho.
O latido dos cães, misturado com alguns uivos lancinantes, fazia ainda mais tenebrosa a tenebrosa noite. Depressa deixei de ouvir qualquer sinal de vida para só ouvir o ressoar dos meus próprios passos.
Sempre perscrutando todos os recantos e ouvido atento a tudo que pudesse quebrar o silêncio da noite, caminhei o mais rápido que me era possível, na ânsia de acabar com o temor que me afligia e revolvia as entranhas mas parecia que a distância era agora maior. E tinha de passar por recantos medonhos: atravessar Fontaradeira, descer o monte da Gave, transpor a corga do Beche, o Couto do Moinho e finalmente o Pedregal. Tudo eram etapas que se iam sucedendo mentalmente umas às outras mas que demoravam uma eternidade a concretizar-se.
E quando algum pássaro batia as asas estremunhado ou algum pequeno animal nocturno fugia espavorido pelo restolho, mais eu tentava estugar o passo amedrontado.
Já o dia luzia quando cheguei ao lugar de origem.
O cheiro do fumo matinal que se espalhava pelo ar vindo das lareiras que começavam a acender-se nalgumas casas, o latido dos cães que eu já conhecia e o barulho dos tachos que se ouvia na rua trouxeram-me uma paz de espírito e uma tranquilidade indescritíveis.
Voltei para a cama e jurei que nunca mais sairia de casa sem ver que horas eram...
Coimbra, 18 de Fevereiro de 2002

terça-feira, 17 de outubro de 2006

O Descanso do Ruben

Em casa do Rogério ninguém se sentava à mesa sem o patriarca se certificar de que se encontrava toda a família.
Naquela noite, à hora do costume, barriga a dar horas, já todos rodeavam estrategicamente a mesa, ávidos de ferrar o dente no parco repasto, quando o Rogério, passando a vista em redor, dá pela falta do Ruben.
- Falta o Ruben, alguém viu o Ruben?
Ninguém sabia do Ruben.
Jantar adiado, toca a procurar pela vizinhança e pelos locais onde costumava parar. Afinal, nem podia estar longe, não era homem de falhar num momento daqueles, até porque chovia se deus a dava e não se podia andar na rua. Porém, nem sinais do Ruben.
Já estafado e a precisar de recuperar forças, o Vicente regressou a casa e serviu-se de uma tigela do saboroso carrascão que estava reservado para a ceia.
Encostou-se a um canto mais escuro, não fosse alguém entrar de repente e detectar a sua gula, quando lhe pareceu ouvir um ruído esquisito vindo do canto mais escuro da dependência onde se encontrava.
Desconfiado e receoso, perscrutou todos os cantos à procura da origem daquele estridente roncar, que mais parecia um velho e ferrugento serrote a cortar ferro, mas só vislumbrou a velha salgadeira. E a salgadeira não podia roncar...
Aproximou-se lentamente e o barulho parecia-lhe cada vez mais nítido. Só podia vir da salgadeira. Seria alguma porcina alma do outro mundo?
Num assomo de coragem, levantou a tampa do enorme caixote e qual não foi o seu espanto quando deparou com o Ruben, dormindo uma reconfortante soneca.
Dado o alerta, voltou toda a gente a reunir-se para o jantar e, já com o Ruben integrado na vasta prole, foi preciso explicar o sucedido.
A verdade é que, como a salgadeira já não continha qualquer naco do precioso bácoro, sua mãe tinha estado a lavá-la e a prepará-la para o reabastecimento, deixando a tampa aberta para secar. Então, o Ruben, num acesso de insaciável sede, atacou o vinho e foi bebê-lo para junto do caixote. Quando já estava devidamente saciado deu-lhe um quebranto e caiu para dentro da salgadeira. Com a trepidação, a respectiva tampa fechou-se, o que não afectou de algum modo o descanso do Ruben que, instantaneamente, adormeceu na paz dos anjos.
Coimbra, 16 de Novembro de 2001

PS – É uma história verídica, ainda da lembrança de muita gente. Em Monção, toda a gente acima dos 50s recorda os dois protagonistas – o Rogério e o Ruben – e o Vicente ainda vive para a testemunhar.

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Soneto do Pau Decifrado

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

Bocage