domingo, 25 de maio de 2008

Do Rio Tua ao Rio Pinhão - Conselho Oportuno

As lágrimas brotaram espontâneas, grossas e escorreram céleres pela face esquálida e envergonhada do velho Professor.
Tinha exercido durante muitos anos a nobre profissão do Magistério Primário, ao mesmo tempo que administrava a Quinta situada nas arribas do Rio Pinhão, entre Soutelinho e Cheires, um local inóspito e agreste mas que produzia mostos do melhor que há em toda a Região Demarcada do Douro, além de outros subprodutos regionais de excelente qualidade, designadamente o azeite, as laranjas, as cerejas e os figos.
Porém, o decurso inexorável do tempo provocou os seus efeitos e com uma reforma que lhe permitia viver decentemente e os rendimentos da Quinta não tinha necessidade de arcar com toda a responsabilidade pelos trabalhos agrícolas. Assim, tratou de procurar alguém de confiança que o libertasse dessa árdua tarefa e foi-lhe recomendado um jovem, vizinho de Sabrosa. Era trabalhador, honesto, conhecia bem as actividades a desenvolver, tinha casado havia pouco tempo e estava disponível para começar a vida. Com estas referências não hesitou em contratá-lo como caseiro.
Mas o rapaz possuía aquilo tudo e muito mais. Com o decorrer do tempo o patrão ia reparando que o vinho tratado se "evaporava" nas pipas, o nível de azeite das talhas abaixava misteriosamente e até nas contas das jornadas laborais apareciam salários de jornaleiros que nunca lá tinham andado, horas que o proprietário sabia não terem sido cumpridas.
Nestas circunstâncias, o Professor decidiu denunciar o contrato de trabalho com o caseiro e deu-lhe ordem para abandonar a Quinta. Só que o jovem caseiro sabia dos seus direitos e confrontou-o com a impossibilidade de despedimento sem ser devidamente indemnizado, recusou-se a deixar a casa que habitava na Quinta e continuou a laborar como se nada se tivesse passado. O proprietário resignou-se perante aquela resistência mas passou a ser ele a contratar os jornaleiros e a controlar os trabalhos, além de exercer uma maior vigilância aos produtos armazenados.
Só que o jovem caseiro não se acomodou e começou a ameaçar o ancião que, sem forças para se opor ao miúdo com sucesso num eventual confronto físico, passou a andar pela Quinta munido de uma espingarda caçadeira, o que levou o empregado a formalizar, no Posto da GNR, uma queixa criminal por ameaças à integridade física.
Foi neste contexto que o Professor foi convocado para ser ouvido no Inquérito como arguido e, ao ser confrontado com o motivo da chamada ao Posto, me narrou, sinceramente angustiado e desolado, todo a enredo por que estava a passar e me manifestou a sua impotência para resolver o problema.
Confesso que me senti mal ao ver aquele homem sério, honesto e respeitável, com um porte altivo e rígido, moldado pelos imensos anos como educador e formador de caracteres, tão fragilizado e vulnerável, não tanto pela circunstância do acto mas pela humilhação de se ver confrontado com a justiça por defender o seu património.
Aquele era o último acto do Inquérito, para o qual também tinham sido convocados e ouvidos momentos antes o queixoso e as testemunhas. Com tudo redigido e conferido, encerrei o auto.
Após a assinatura do documento continuamos a conversar sobre o mesmo assunto e no final disse para o meu interlocutor: - Olhe, Senhor Professor, uma acção de despejo vai ser morosa e difícil, e o senhor também não pode simplesmente ir à casa que o caseiro ocupa e colocá-lo no olho da rua porque além de violar o seu domicílio pode incorrer em responsabilidade criminal por despejo ilícito mas... olhe... se não teme as consequências e estiver disposto a assumir as responsabilidades que daí advierem, o que eu faria num caso semelhante era aguardar que eles estivessem fora, punha-lhes tudo na rua e trancava a casa... Mas não diga a ninguém que eu lhe disse isto porque eu nego, confidenciei-lhe meio a brincar.
Terminou o acto, acabou a conversa e o Homem lá foi à sua vida.
Decorrida cerca de uma hora o telefone soa. Um jovem caseiro, lá para os lados de Soutelinho, clamava a nossa presença porque o senhorio tinha-lhe posto as coisas na rua e encontrava-se dentro da casa munido de uma espingarda, não o deixando entrar.
Não havia forma de contornar o conflito. Os dados estavam lançados e era preciso agir. Lentamente foram reunidos os meios para intervir e deslocámo-nos para a longínqua propriedade. O Jeep não é uma viatura propriamente rápida e além disso o caminho para a Quinta não permitia a sua passagem. Tivemos que o deixar a cerca de dois quilómetros e fazer o resto do percurso a pé. Demorou muuuuuito tempo. A luz do sol começava a empalidecer e a noite aproximava-se. No trajecto pedonal cruzámo-nos com um ancião que transportava um objecto debaixo do braço parecido com o estojo de uma espingarda de caça mas não havia tempo a perder nem razão para especulações. Uma missão mais elevada nos aguardava.
Quando chegamos à Quinta o caso estava sanado. Um vizinho intermediou o conflito e acordaram em deixar permanecer os caseiros na casa até irem embora de vez no dia seguinte... - Ele saiu daqui há instantes com a espingarda, ainda se devem ter cruzado com ele pelo caminho, disse o jovem.
- Não, não encontramos ninguém... e uma vez que está tudo resolvido nada mais temos a fazer, passar bem...

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Eira-Velha

As suas estórias são muito importantes como objecto de pesquisa com vista a estruturar uma cultura organizacional da Guarda.
Permita uma sugestão: Ir publicando algumas, uma a uma, na Revista da Guarda. Tornaria possível e mais fácil a sua posterior reunião em volume, caso não tivesse outra solução.

Abraço do Zé Guita

bettips disse...

De ombro em ombro, como um, papagaio... neste caso, uma papagaia, passei aqui e parece-me que o amigo gostaria de ver: um abaixo assinado da Quercus sobre a barragem - e os estragos - no Tua. Pensando no futuro... digo eu que estou no mesmo barco "tendo a eira muito milho visto"!
Abç

Emanuela disse...

Olá amigo,
nem sempre é possível resolver tudo dentro da lei, cheia de burocracias.Ainda assim, há de se fazer o que é justo e isto o foi.
Um abraço