terça-feira, 20 de maio de 2008

O Padre Lisboa

Foi no ano de 1992. Havia pouco tempo que eu tinha assumido funções em Valença e aproveitava todos os ensejos e tempo disponível para adquirir o máximo de conhecimentos sobre a área e a população, inteirar-me de problemas e procurar resolver os que se encontravam pendentes.
Numa tarde amena de Maio, no regresso ao Posto após um giro pela zona poente do concelho, eu e o meu acompanhante estacionámos por alguns minutos na EN 13, a poucos metros do cruzamento de S. Pedro da Torre, mais para observar o escasso trânsito do que propriamente para exercer qualquer acto de fiscalização rodoviária.
Volvidos escassos minutos, avistámos um velho carocha a cerca de duzentos metros, no sentido Valença/S. Pedro da Torre e o meu acompanhante confidenciou-me: Se quiser rir um bocadinho mande parar aquele volkswagem que é o Padre Lisboa de Fontoura.
Não tanto para me rir mas para conhecer a personagem, estiquei o braço e dei ordem de paragem ao automobilista que imediatamente abrandou a lenta marcha a que já circulava e percorreu a passo de caracol, pela berma, os cerca de cem metros que ainda faltavam para chegar até nós.
Mal imobilizou o veículo, o Senhor Padre, um sexagenário bem constituído fisicamente, de cabelo grisalho, rigorosamente aparado e penteado para trás, saiu do carro e cumprimentou-nos afavelmente fazendo menção de apresentar os documentos.
Interrompi-lhe o gesto e depois de me apresentar informei-o de que me encontrava ali havia pouco tempo e que aquela "intervenção", embora de carácter policial, visava apenas cumprimentá-lo e reafirmar a minha disponibilidade para o que precisasse, no âmbito das minhas atribuições legais.
Após este intróito e para que a conversa não se ficasse apenas por aquele formalismo, interpelei o Padre Lisboa acerca de um evento que dias antes, promovido pela Associação de Comandos, tinha sido realizado em Fontoura, com o patrocínio do próprio Pároco.
Com um largo sorriso estampado no rosto o Padre Lisboa exclamou: Óh caralho, aquilo esteve bom, home! Esteve o Jaime Neves e...
Deixei o reverendo continuar, entusiasmadíssimo, a fazer o relato do acontecimento, todo salpicado de palavrões do mais puro vernáculo e olhei disfarçadamente para o meu companheiro que, com o rosto escarlate de tanto reprimir o riso, fazia um esforço enorme para conter a gargalhada.
Contaram-me depois que, durante uma procissão, na paróquia onde exerceu o seu ofício divino, deslocava-se à frente a ordenar tudo quando uma intensa bátega de chuva se abateu sobre o cortejo. Dois miúdos procuraram abrigar-se sob o beiral do telhado de uma habitação que ladeava o percurso e quando o Padre os viu assim encolhidos disse-lhes: Fugide caralhos que vos molhais todos!
Era mesmo assim, o Padre Lisboa.

4 comentários:

Paulo disse...

Meditai uma página dramática de S. Jerónimo: «Oh! quantas vezes, no deserto, nessa vasta solidão calcinada pelos raios de sol, habitação agreste dos monges, eu me vi em imaginação no meio dos prazeres sedutores de Roma».

A verdade é que a guarda da castidade é uma espécie de martírio...

PS: Nesta minha 1ª passagem por este espaço, considero-o interessante.
Obrigado.
Abraço
Paulo

Bocanegra disse...

"Home" de alma cristalina e de coração puro esse Padre Lisboa; "inda" eu aposto!?

Em Castro havia um grande senhor: - Tio "Labaredas" de seu nome que quando chegava ao café e dava com o pessoal a jogar à "Lerpa" dizia com um sorriso aberto: - Boa noite "filhos da puta". E logo o pessoal respondia; Boa noite Tio "Labaredas"; pague mas é um copo e venha sentar-se aqui!

Gente de outros tempos! Gente de outras naturezas! Gente que destilava, numa palavra agreste, o calor fraterno da humanidade!

Abraços Eira-Velha! E força naquele sítio que nós sabemos...

Anónimo disse...

Uma história encantadora do nosso país real. Gostei de a ler...e de a sentir.

Anónimo disse...

Mais uma estória do Eira-Velha, esta com uma pitada de sal... mas também com um óptimo fundo.
Palpita-me que junto da eira a sementeira foi rica; continue a laborar na ceifa que há um celeiro para encher. Vale a pena e é importante.

Abraço do Zé Guita